01/01/2015

Crónica



DE   MEL  PIOR





- Qual é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo adequar? - pergunta-me ele ao telefone.
- Nós adequamos - respondo com segurança. Primeira do singular - insiste ele.
- Espera lá, deixe ver. Com essa você me pegou.
E arrisco vacilante:
- Eu adéquo?
- Não, senhor.
- Eu adeqúo? Não pode ser.
- E não é mesmo.
- Então como é que é?
- Quer dizer que você não sabe?
- Deixe de suspense. Diga logo.
- Não tem. É verbo defectivo.
- E você me telefonou para isso? 
Verbo defectivo. Tudo bem. Eu não teria mesmo oportunidade de usar esse verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Nunca me adéquo a questões como esta. Ou adeqúo.
- Presente do indicativo ou indicativo do presente? - é a minha vez de perguntar. - No nosso tempo era indicativo presente.
E é sua vez de não saber. Desculpa-se dizendo que andaram mudando tanto a nomenclatura gramatical, que a gente acaba não sabendo mais nada.
- E o verbo delinqüir? - torna ele.
- Que é que tem o verbo delinqüir? - quero saber, cauteloso.
- A primeira do singular?
- Não tem. Também é defectivo.
Mas ele é teimoso:
- E se um criminoso quiser dizer que não delinqüe mais?
- Se usar esse verbo, já delinqüiu.
E acresento, num tom de quem não sabe outra coisa na vida:
- Além do mais, leva trema no u. Para que se fale delincuir, que é a pronúncia correta.
- Quem fala delinqir, sem o u, vai ver é da polícia.
- Ou quem fala tóchico, como diz Millôr.
- O Millôr fala tóchico?
- Não. O Millôr é que disse que quem fala… Ora, deixa pra lá.
 
Ele volta à carga:
- O trema já não foi abolido?
- Que abolido nada. Aboliram tudo, menos o trema
- Por falar nisso, outro verbo defectivo.
- Qual?
- Abolir: não tem primeira do singular.
- Como não tem? - reajo - Eu abulo.
- Neste caso seria eu abolo.
- Coisa nenhuma. Eu abulo, sim senhor.
E invoco a autoridade de quem sabe o que diz:
- Não é eu expludo? Pelo menos o Figueiredo não me deixa mentir.
- O Cândido ou o Fidelino?
-  O João mesmo. O presidente. Ele falou expludo e não explodo.
- Se essa regra vale, deveria ser eu cumo, eu murro, eu murdo…
- Então me diga uma coisa: Você sabe qual é a primeira do singular do verbo parir no indicativo?
- Ninguém pare no indicativo.
- Pare, e em todos os tempos, meu velho.
- Esse quem não corre o risco de usar sou eu.
- Pois então fique sabendo: é simplesmente igual à primeira pessoa do singular do verbo pairar.
- Eu pairo?
- É isso aí. Uma senhora que tem muitos filhos pode perfeitamente dizer: eu pairo um filho por ano.
- Co’s pariu.
- Se não quiser acreditar, não acredite. 
É a vez dele:
- Você sabe qual é o plural de mel?
- Já vem você. Mel não tem plural.
- Como não tem? Tem até dois. 
E me conta que outro dia um entendido em mel fazia uma preleção sobre o assunto na televisão. No que saiu do singular para se meter no plural, quebrou a cara:
- Acabou falando que existem muitos mels diferentes.
- E não existem?
-  Existem. Mas não mels. Com essa ele se deu mal.
- Se deu mel então. 
Era a asa da imbecilidade começando a ruflar aos meus ouvidos:
- Ou você vai me dizer que mel também é verbo defectivo?
- Perguntei a uma amiga minha que entende.
- De mel?
- Não : de plural. Ela confirmou: tanto pode ser méis como meles. Mels é que não.
A esta altura o mentecapto fala mais alto dentro da minha cabeça:
- Dos meles, o menor.
Como ele não responde, acrescento:
- Até logo. Melou o assunto.
E desligo o telefone. 

FERNANDO SABINO, escritor e jornalista brasileiro (1923 – 2004) 
in «O Gato sou eu»,  crónicas, Editora Record, 1983


Nota: Esta crónica  é anterior à reforma ortográfica brasileira que aboliu o trema.

Edição e fotos (com manipulação cromática) de augusto mota
 

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