13/08/2015
06/08/2015
Rosário breve
PALAVREADO ESTI(O)UTONAL (I &II)
I
História Lenta
com Hortênsia mais Dois Azúis
Aconteceu-me
há momentos uma coisa que vos quero contar.
Não
vou escrever um poema sobre o que se passou.
Vou
só contar.
Por
volta das seis da tarde, saí para descansar os olhos.
Subindo
ia eu pelo lado esquerdo da avenida, o lado do Parque.
Do
lado oposto, vinha descendo uma mulher jovem.
Vestia
uma blusa azul-celeste.
Vinha
longe.
Parei,
voltei-me para o Parque e tirei algumas fotografias verbais ao chão vegetal.
A
luz era baça, outoniça (ainda o é, posto que escrevo vinte minutos depois).
Quando
me preparava para colher a imagem de certa hortênsia azul que ali vigora em
solidão, ouvi nas minhas costas a voz:
–
Boa tarde!
Ela
tinha parado no passeio dela para me dizer isto.
Virei
a cabeça e mergulhei naqueles totais olhos azúis (como a blusa dela e como a
minha hortênsia).
Eu
devolvi-lhe a boa-tarde e levantei a mão em saudação.
Nunca
a tinha visto por aqui.
É
uma rapariga doente.
Tudo
dela emanava a outra dimensão, a inexpugnável cosmogonia da doença mental.
Ela
deu-se por satisfeita, prosseguiu a descida nos seus passinhos chineses,
Ariadne enrolando por si o fio invisível da vida dela.
Eu
fotografei a hortênsia e subi até vós.
Eu
e ela ficámos, por assim dizer, quites:
nada
posso fazer quanto à loucura dela,
ela
nada pode fazer pela minha.
II
Fernando António Nogueira
Fernando António Nogueira
Uma
palavra pode ser uma pessoa.
Há
uma idade-maçã em cada pessoa.
De
novo, e descaradamente, rói a infância-maçã a velha pessoa.
A
velhice é o bicho adentro a maçã-pessoa.
A
pública noite vence a particular de cada pessoa.
Vence-a
pessoa a pessoa.
De
mínimas vitórias é feita a Grande Derrota da pessoa.
A
minha noite não é a de todos – é a da minha pessoa.
Vou
falar-vos da minha mais recente noite em pessoa.
Não
vou escrever um poema sobre o que se passou.
Vou
só contar:
Sucedia
ser pelo entardenoitecer. Sob a latada adoçada pelo Estio e acossada já pelas
vespazzzzzzângonas do açúcar verde-âmbar-mel, eu ventilava-me em aura de buda
vestido. Da mata derredor, os últimos bichos urdiam deles, e do dia, a música
derradeira, essa que antecede o sono – ou o passamento – ou o pensamento.
A
hora à aurora avessa adentrava-me a mente à maneira de um nihil obstat o mais generoso. Por conseguinte, a vida mesma
coçava-me e acossava-me, vespa ela também, o corpo escrevente à guisa de um imprimatur potest o mais facundo.
Escutei
o chiar do carro-de-bois do meu vizinho Nando-Tó Nogueira, cuja xiloacústica tracejava
o vidro do ar em limalhas de ponta-de-diamante. Sentia em perfeição a feição da
gravidez fecunda e jucunda das macieiras (Há
uma idade-maçã em cada pessoa etc.)
Nenhum
incêndio queimav’ardia o Bosque-de-Existir-e-Pensar-no-P’ra-Quê-Disso.
Era
o sossego, era a açucena, era a cegarrega, a doçura sensível, a seiva sedosa, a
seda & a sede saciada. Era a tal hortênsia. Sentia-me bem, a ponto de me
não causar mal a consciência de haver nascido sem que opinião me houvesse sido
pedida.
Foi
então que me chegou a Palavra.
Em
Pessoa.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 6 de Agosto de 2015
Fotografias e edição de augusto mota
foto de cima: Hortênsia (Hydrangea macrophylla)
foto do meio: Maçãs 'Redlove', ou da Toscana
foto de baixo: Um Buda de estimação, esculpido em madeira
05/08/2015
Letra para um fado
FADO DE NÃO MORRER
Não morreste, eu não deixei,
De mim não te afastaste.
Obediente à minha leiDe mim não te afastaste.
De não deixar morrer a haste
Da árvore que eu plantei,
E em minha alma tu ficaste.
Os amigos que perdi,
Ao pé de mim sempre vão,
Tenho-os todos aqui, Ao pé de mim sempre vão,
Foi para isso que eu nasci:
Não deixar morrer ninguém,
Nem pai, nem filho, nem mãe.
Batam palmas, ovação,
Que eles bem vivos estão:
Os que se julgam perdidos,
Trago-os presos aos sentidos
Aos gestos do dia-a-dia;
Vejo-os em todo o lado,
Tal como eram outrora.
Por isso canto este fado
Cheio da pura alegria
Onde a vida se demora
E a morte não tem lugar.
Vamos lá todos cantar,
Amigos, chegou a hora
De celebrarmos a vida –
Tudo feito de tal sorte,
Com força tão desmedida,
Que pra longe fuja a morte,
E fique lá esquecida
No mais remoto lugar:
Amigos, vamos cantar!
António Simões
Fotografia e edição de augusto mota
na foto: Cerejeira japonesa (Prunus serrulata 'Kwanzan')
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