22/10/2015

Rosário breve



VOU ALI VER SE VEJO






Extinto o Estio em os pretéritos fumos sem fogo dos pretéritos acabados, acontecem fora de grande pasmo as tropelias do outonecer invernoso. São manhãs já grisalhas à nascença, tardes bafientas como quermesses de sacristia, noites engelhadas como peles outrora seminais. É natural. Faz parte. A Grande Roda é isto e isto mesmo.
A chatice está no aluir dos casarões devolutos. São berbicachos administrativos de alto-lá-com-o-charuto. Solidões geriátricas, óbitos, heranças, sobrinhos remotos, primalhada íncola que se está nas tintas – um ror e um horror de bens ao luar que a indiferença atira ao regaço dos municípios como quem dá uma esmola maligna. Depois, o mal acontece e pouco remédio tem.
Foi o caso da casa da Rua do Pocinho, ali à Ribeira de Santarém. Pelo anoitecer de sábado passado, 17 do corrente, as velhas paredes deram de si sem dó. Houve que demolir o resto, claro. O problema era a estrada atulhada de tantas misérias aluídas. Já só muito tarde (domingo cedo, isto é) a circulação derredor foi restabelecida. Entre Almeirim e Santarém, só pela ponte Salgueiro Maia. Como há bem mais de um ano que a EN114 continua amordaçada pela incúria dos desmandados mandantes, os devotos de Santa Margarida encostam-se ao que podem, coitados, enquanto as fantasiosas e utópicas obras de estabilização das barreiras não põem os catrapilos a fumegar. Ninguém se aleijou, é o que vale. Desta vez.
Mais cómica é a situação do passeio desnivelado em Pernes. Mas atenção: cómica, enquanto alguém não esgalhar por ali um perónio ou der um daqueles bate-cus que seccionam a medula-espinhal. Parece que algum engenheiro tipo domingo-de-Agosto por ali projectou uma língua pedonal que saliva de lado como os bêbados felizes. A confusão mete ingredientes de construção de espaço comercial no centro da Vila, amailos limites do edifício, amailo o desgracioso adernar do passadiço pró-peão. Agora que chove dos cântaros de Deus, que Ele a dá, se a coisa descamba para o escorrega-tem-te-não-caias, o mais certo é à maltosa de Pernes acontecer o mesmo que ao casario velho da santarena Rua do Pocinho. Enfim: cornos ao lume e fé nas castanhas, que o tempo é destas & daqueles.
Nos entrementes, os concelhos de Abrantes e Mação deram também para o charco pluviométrico. Sobrevindo umas bátegas boas na passada segunda-feira, 19, ele foi todo um estendal de estradas, caves e garagens afogadas como gatinhos em saco de serapilheira. Comércios e bens particulares rangeram e doeram. Gente houve sitiada nos próprios veículos, como em Alferrarede e no Cabrito, valendo-lhe a pertinácia sempre generosa do bombeiral. É natural. Faz parte. A Grande Soda é isto e isto mesmo. Não há aqui política – é tão-só o Criador a brincar às destruiçõezinhas para entreter a modorra da eternidade.
E agora que a crónica já caiu, já escorregou e já choveu, nota final para uma pena minha: a de não ter estado nem dia 16 nem dia 17 na Azambuja. Havia lá teatro de revista com participação do antigo herói romântico da minha Irmã – o senhor António Calvário. Antigo, quando muito moço, Rei da Rádio, Ídolo TV (sem favor e, sobretudo, sem comparação com as celebridades de cocó dos nossos dias), é homem que ainda por aí canta e por aí faz pela vida ainda. “Mais Riso É o que É Preciso” se chamava a tal revista.
Quanto a mais siso, vou ali ver se chove.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 22 de Outubro 2015



  


Fotos e edição de augusto mota 

Interior de uma antiga oficina de automóveis no centro de Leiria, Novembro de 2007. Hoje, limpo o entulho, permanecem de pé as paredes da fachada, mas o interior continua vazio de tudo. Há projectos arquitectónicos permanentemente adiados...

 

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