A gente B.-B.ê-se por aí
1. Maio também serve para desaparições
pouco místicas. Terça-feira, 9 do corrente, foi a vez da de Baptista-Bastos, ao
cabo de 83 anos de nascido. Foi um cultor da Língua de subido mérito. Gostava de
jornais bem escritos e de livros bem lidos. Era pessoa e personagem. Conhecia
milhares de histórias, foi protagonista de milhentas ele próprio. Correu todas
as redacções, percorreu todas as ruas de uma Lisboa que, sua de nela nascer
& de em ela morrer, poucos terão conhecido tão bem. Deixa admiradores,
indiferentes e rancorosos. A mim, deixa-me vontade e pretexto para mansa
releitura de alguma da sua literatura, que noutra idade abordei talvez sem a
atenção mais proveitosa. Penso que o ângulo do obituário pode ser mais justo
se, em vez de “Morreu Baptista-Bastos”, assentarmos que – B.-B. viveu. Ora,
como é sabido, não se pode dizer o mesmo de toda a gente.
2. Não se pode
dizer o mesmo de toda a gente porque há mortos-em-vida que por
aí andam a roer broa muito mal empregadinha em tais dentuças. Ocupam os
poleiros e mamam as mordomias que lhes presta a populaça pobrete & alegrete
da nossa espécie de fatalidade. Parasitam todas as áreas da sociedade.
Infestam, da mesma, todas as secções produtivas – volvendo-as improdutivas.
Política, desporto, ex-cultura, culinária, turismo, jornalixo, hidráulica, estiva, transportes, câmaras, clubes de caça
& pesca, lares da última idade, bombeiros, saúde, correios, eléctricas,
esplanadas – a tudo esterilizam. E reproduzem-se muito, gerando criancinhas
estupidificadas pela electrónica amestradora deste século em que a
incomunicação pessoal está na razão inversa da profusão de máquinas de bolçar bitaites. Não sofro dúvida: o nosso é um
tempo sem eira, sem beira e sem ramo de figueira. Mas quê? Chateio-me muito com
isso? Cada vez menos. Sobrevivo e deixo sobreviver. Reciclo o dia antes que o
ontem se faça tarde. Ainda agora.
3. Ainda agora, na esplanada de mesas
daquele amarelo da publicidade ao chá de palhinha, estava o maralhal muito
sossegado a estiolar à torreira de um sol bruto como as derrocadas mineiras.
Nisto, uma inquietude assolou a assembleia de desirmanados. Uma ansiedade
esquisita, um latejar de próstatas, uma ânsia de ganir à Lua vespertina. A
causa? Uma mulher. Apareceu-nos ali sem azinheira nem aviso. De vestido justo a
ponto de segunda pele, era um clarão de champanhe. Manava uma fragrância de
peixe fresco alimentado a fruta e a leite, decerto por rabejar de cintura qual
sereia profissional. Esfíngica, muda, impositiva & incómoda tipo
mulher-do-fraque, fez-nos ranger a prótese dentária como se de repente
tivéssemos começado todos a sorver esferovite. O B.-B. não lhe perdoaria. Nós
perdoámos-lhe. Demorou-se pouco, ficando-nos portanto para sempre. Abençoada
posta não-pescada. Milionariazinha de sua avó. Bisontezinho de Foz Côa em
diferido de Paris. Vontadezinha de ter um porta-chaves de BMW. Santa &
Senhora. Tive de forçar com conhaque o açude represo do gasganete. De volta a
casa, ainda estive para contar à minha mulher. Já nem sei porquê, não contei.
À
aparição, dei apenas, cão velho que
sou entre flores, um secreto adeus.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 11 de Maio de 2017
Foto de B.-B. obtida na net
Edição de augusto mota
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