17/04/2006

recordações de um escravo romano

Outrora fui escravo romano e dedicava-me a copiar manuscritos já anteriormente copiados. Fui, portanto, o elo de uma cadeia editorial que os gregos implantaram na Roma decadente. Fui, acima de tudo, o responsável pela transmissão de um saber cada vez menos original e cada vez mais degradado. E só assim se compreende que a cultura helénica não tenha permanecido viva até hoje! Sim, é a essa cadeia de escravos-escribas que imputo a derrota intelectual da Grécia em apogeu.
Jamais alguém ousou afirmar tal coisa, mas eu faço-o como meio de libertação de um pesadelo que há séculos me atormenta. Não receio críticas, nem, tão pouco, a erudição histórica dos nossos intelectuais que ainda se não cansaram de repetir a queda dos impérios e o florescimento das repúblicas, baseados em "documentos autênticos"... Não, não vos receio homens de teoria, profanadores inconscientes dos templos sagrados, violadores incríveis dos túmulos dos faraós, comerciantes autênticos da beleza virginal das estátuas clássicas! Sim, onde está a vossa humanidade e o vosso sincero discernimento perante a grandeza das civilizações passadas?
Vós, traidores inconscientes da humanidade, abandonai os ousados projectos de reabilitação das figuras históricas, porque elas se reabilitarão a si mesmas nesta vida até à eternidade! Não apresseis o conta-gotas da clepsidra do tempo, porque essas figuras se repetirão em formas e em factos, deixando à imaginação de cada um a capacidade máxima de condenação ou de integração na verdadeira escala do homem.
Eu próprio fui, como vos disse ( e neste momento dirijo-me também a vós intelectuais da História ), escravo romano e dedicava-me a copiar manuscritos anteriormente copiados. Reconheci já, também, a minha colaboração na derrota da hegemonia cultural da Grécia, mas, posso agora afirmar, tal colaboração não foi intencional, nem presidiu a ela qualquer intuito de vingança pelo facto de estar a trabalhar para os estrangeiros conquistadores, ou qualquer ressentimento pela minha condição de escravo. Aliás nós, escravos romanos, éramos uma classe superior em espírito, pois nos estava incumbida a tarefa de prolongar a Grécia intelectual, de afirmar um passado num futuro, através daquilo que é mais real no homem - o seu espírito. E, antigamente, embora houvesse sentimentos mais bárbaros, havia também, apesar de contraditório, uma compreensão mais humana do homem. Sentia-se o homem como animal racional e como animal e como racional era tratado. Ignorar o animal no homem é ignorar o homem. O homem não poderá, jamais, ser um génio divino, mas todos os homens - ou o homem universal - poderão constituir uma consciência poderosa que os leve a esse génio. A temporalização do génio humano é um fracaso da nossa civilização desunida em busca de uma verdade única e individual, desagregando-se em átomos de incompreensão e caindo na animalização total das virtudes racionais concedidas ao homem-animal.
Aqui voltamos ao ponto, há pouco referido, da reabilitação das figuras históricas, que acaba por coincidir com a alusão ao homem universal e à construção da tal consciência poderosa que, deve-se agora dizer, tem um carácter eminentemente impessoal e fora de qualquer localização histórica, projectando-se desde os momentos proto-históricos da existência das primeiras consciências individuais até para lá das impossíveis hipóteses de sobrevivência das galáxias imaginadas.
Entretanto vamos guardando a certeza de que as tais figuras históricas se reabilitarão em nós e por nós, dentro do tal plano de repetição de factos do passado. Condenaremos as que não se integrarem no conceito exigido de inteira realização humana; exaltaremos as que se elevarem a um plano máximo, figuras típicas de todas as civilizações, símbolos recorrentes que os espíritos fracos e sem imaginação tendem a idolatrar, caindo-se, por vezes ( isto é, em determinadas épocas históricas ), na feitura de novos mitos e de novas religiões.
Deixemos os historiadores continuar na sua labuta arqueológica, desenterrando falsidades dos arquivos imperiais, entorpecendo a imaginação com uma arreigada submissão à ordem histórica tradicional, construindo hipóteses quando deviam ter certezas, se o ópio da razão os não iludisse com uma necessidade de lógica coerente... Quantas vezes não param eles a História por falta de imaginação? Em outras circunstâncias invertem os factos e deturpam as formas com a certeza tradicional que a sua formação académica lhes forneceu, só porque negam à imaginação qualquer possibilidade de afirmação científica, ignorando, assim, o fundo colectivo inconsciente que preside a todas as acções humanas.
Nesses tempos em que fui escravo romano transmiti uma falsidade que até hoje se tem repetido e da qual sinceramente me envergonho. Aliás esta prática de deturpação da matéria copiada era frequente entre nós, os escribas, e com ela gozávamos estupidamente, porque, no fim de contas, alguns desses documentos apócrifos, que os historiadores encontraram, fundamentam hoje o edifício-chave de toda a construção histórica. Eu sei que éramos demasiado imaginativos para nos atermos à transmissão de um saber já feito e, para nós, escravos romanos submetidos ao jugo grego, insuficiente e sem qualquer interesse. Por isso talvez a nossa inconsciência seja perdoada! A imaginação forçava-nos a devaneios, obrigando-nos a transmitir uma cultura mais tarde atribuída a outros e que nós forjáramos em horas de distracção. Construímos, até certo ponto, um sistema válido, embora não correspondesse à verdade que os gregos nos impunham, sistema esse que poderá, legitimamente, pôr em causa a ideia do florescimento da cultura helénica, já que assenta em invenções declaradamente romanas.
A falsidade que transmiti continuará em meu segredo. Confessei a minha culpa e sinto-me aliviado com isso, mas nem sequer ouso referi-la, porque tal ocasionaria a destruição completa dos quadros históricos estabelecidos e a inversão total do conceito de verdade. No fim de contas fui vítima inconsciente da tal consciência universal, a qual pretenderia impor, talvez, um padrão de cultura às futuras civilizações e mostrar ao mundo as capacidades que animam o espírito humano e a possibilidade de constituir o ser universal num momento determinado da vida terrena. Tal foi impossível porque o génio grego estava demasiado afeito às capacidades racionais do espírito para se libertar em voos imaginativos. Foi o abuso da razão que os condenou e do seu génio só hoje prevalecem as formas perenes da mitologia que os iniciados de todas as religiões propagaram ao mundo e adaptaram a cada país. Assim se diversificou a ideia do ser único, a consciência universal, o génio poético. Mas a repetição da História, nas formas e nos factos, o reintegrará e, nesse dia, não mais haverá recordações de escravos romanos, nem de impérios, nem de repúblicas. Nesse dia o Homem alcançará o infinito através da sua imaginação.
Augusto Mota, in "Via Latina", jornal da Associação Académica de Coimbra, Coimbra, 8.2.1960.

8 comentários:

Anónimo disse...

Abençoados os sonhadores porque deles será o "Reino da Utopia"...

Anónimo disse...

Um texto carregado de sentido. Uma perpectiva inusitada da História à luz dos cânones clássicos.
Uma finura. Um esplêndido final.
"Congratulations"!

Anónimo disse...

De surpresa em surpresa, o Augusto Mota deixa-nos impresso no blogue bocados da sua alma inquieta... mas porque escamotear... onde páram os génios, Amigo?

Anónimo disse...

Como é repousante lê-lo ao som do "Ne me quittes pas" do Jacques Brel.
Obrigada, Amigo.
Este blog vai em crescendo de perfeccionismo.
Parabéns!

Anónimo disse...

E agora?
Também eu fiquei estupefacto!

Anónimo disse...

pois, meus amigos!
os vossos comentários sensibilizam-nos e são, para nós, incentivo para irmos sempre em frente...
sei que o Augusto Mota está tão reconhecido que nem se atreve a agradecer-vos.
quanto mais reconhecido, maior o silêncio...espevitem-no, pode ser que o convençam!

Anónimo disse...

Where did you find it? Interesting read Casino blackjack insurance

Anónimo disse...

That's a great story. Waiting for more. » » »