27/04/2006

dia 8, 19:17

Ainda não vejo a porta.
Lá fora, a chuva continua, incessante, embora daqui não a consiga ouvir. O silêncio é gordo e sem moscas. Pegajoso. Tanto, que a cada passo, os meus pés transformam-se em cães enraivecidos, latindo contra um inimigo invisível ecoando pelas paredes e tecto.
O corredor é longo e largo. As paredes são cinzentas, sem brilho. E a luz baça ilumina-me os passos cadenciados. Sei que atrás destas paredes, de um lado e do outro, eles dormem. Ou fingem que dormem todos os que vão morrer. Mais cedo ou mais tarde. Todos sabem o seu fim. Mesmo assim respiram sem pressa e os corações batem-lhes baixinho para não se fazerem notar enquanto se preparam.
É a minha primeira vez. A dele também. E estas horas que antecedem a execução são demasiado longas e pesadas. São horas que fedem: odoríferas horas. No entanto, se para mim, estas, são as primeiras e as mais duras, da aplicação final de toda uma aprendizagem, para ele, serão as últimas; as últimas e as mais céleres. É luxuriantemente simples: um sabe que vai matar; o outro sabe que vai morrer; e sabendo nós o mesmo, estamos unidos a essa mesma morte, como dois gémeos siameses estão unidos à sobrevivência pela partilha de um orgão comum; de um orgão vital, do qual os dois dependemos em simultâneo, mas que tem de ser dividido, lancetado, e que dessa cisão, os dois também sabem, que depois apenas um sobreviverá: talvez o mais fraco.
A sombra de um homem robusto, de cabelo cortado à escovinha, caminha a meu lado. Um cheiro acético a desinfectante impregna o ar. O chão, as paredes, o tecto, as portas, as grades, as celas, os catres, a cozinha, os refeitórios, as casas de banho, tudo, está impecavelmente limpo, imaculadamente puro; entranhado para sempre com este odor a fruta asseada. Que faz lembrar o cheiro das putas lavadas; das higiénicas e desinfectadas vaginas, que de quando em quando, aguardam os clientes, palpitantes sobre a cama, com odoríferas fatias de maçã encostadas à carne por dentro das cuecas.
Paro à distância de dez passos. O puxador da porta interroga-me a mão. Procuro a razão pela qual as minhas pernas se recusam a avançar. As minhas pernas têm medo. Um medo individual. Como se fossem elas próprias seres autónomos com vida própria.
Com a cabeça mal voltada, volto-me para trás. Procuro no chão de mármore as marcas recentes dos meus passos ladrados. Tudo está limpo. Imaculadamente puro. Preciso de uma casa de banho. Quando os nervos trepam por mim acima tenho sempre vontade de ir à casa de banho. Não só para urinar ou defecar, fazer aquilo que todos os bichos fazem, mas para espremer borbulhas e pontos negros em frente ao espelho. Espremer borbulhas e, ou, pontos negros, ou os dois em simultâneo em frente do espelho, relaxa-me mais o sistema nervoso, a frequência cardíaca, que dez inspirações abdominais completas. Ver o sebo ejectar-se dos poros e projectar-se no vidro, transmite-me, não sei bem como, uma pseudo-mesquinha sensação de segurança. Uma segurança egocêntrica, que nenhum ansiolítico ainda assim me conseguiria dar desta forma tão absoluta e macrobiótica. Preciso de espremer borbulhas. Ou isso ou comer laranjas.
É melhor regressar. Não é medo. É uma necessidade fisiológica. Uma casa de banho. Não é medo. Não, não é.
( a continuar ... )
Sandro William Junqueiro, inédito, in "Cadernos do Algoz".

26/04/2006

Legenda Íntima 105.
Augusto Mota.

Os Tais Ministros

"Ordinariamente todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o Estadista. É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?"
Eça de Queiroz, in "O Distrito de Évora", 1867.

25/04/2006

Na falta de um cravo um nenúfar.
Fotografia de Maria Gomes.

Fim de Tarde Abril

atravessámos a poalha do fim de tarde em abril
escuro lamento da voz rompíamos o círculo estreito de
amizades cinzentas o muro branco da lamentação
antiga abríamos um seco areal aí passava o sol
banhando a tua roupa a nudez do corpo macerado no
ofício dolorido dos navios.
Orlando Cardoso, inédito.
Cravinas.
Fotografia de Augusto Mota.

sempre Abril

os sonhos perdem-se nas
muralhas e no
silêncio
solfejado
dos pianos negros
Na pauta
o maestro explode
as sinfonias inacabadas
de um cravo
tocado em azul
gabriela rocha martins.

23/04/2006

Margaridas

Fotografia de Sana.

se eu pudesse ...

Ao Amigo Augusto Mota!
23.04.2006.
quisera eu
perder a cabeça e
ser
apenas
coração

ah se pudesse
ser
apenas
eu
gabriela rocha martins.

23.04.1936

"Margar". 1,80mX1,50m. Augusto Mota.
Tinta plástica sobre platex. 1963.

o arlequim

Repentinamente acordei sobressaltado com um estranho som de guizos bem metálicos, que me feriu os ouvidos como o canto despropositado de uma ave agoirenta. Acordei do letargo pesado em que me encontrava e esfreguei os olhos para dissipar qualquer dúvida. Mas não, não eram visões de pesadelo, nem delírio de uma vigília forçada. Arrepiei-me, ainda, com uma gargalhada tão estridente, que parecia continuar a agudeza metálica dos guizos que a princípio ouvira. Tudo se formou mais distintamente no meu espírito e as imagens sucederam-se fantasiosas, num desenrolar quase cinematográfico.
O espelho do guarda-fatos era como que um écran reflectindo a realidade do quarto e a própria cama onde me encontrava deitado e, ao mesmo tempo, revelava todo um mundo estranho de imagens inconscientemente acumuladas para além daquela fina película reflectora, que inicia um universo de focos múltiplos. Desenrolou-se toda a cena num sistema de fotografia animada, fantasticamente mesclada com uma realidade quase diluída de matéria palpável. Vi estantes e cadeiras esfumarem-se numa penumbra longínqua, enquanto figuras ainda irreais se aproximavam da face límpida do espelho. Guizos e mais guizos encheram de ressonância a caixa vazia do guarda-fatos e um ribombar, agora surdo, anunciou uma figura definida de minúsculo arlequim que, saltitante, pousou no puxador do guarda-fatos, tinindo sempre os guizos que lhe ornavam os pulsos e os tornozelos, como que para prevenir espíritos menos atentos a estas suas visitas tão súbitas.
Fixei, então, o arlequim e quase me dispunha a agarrá-lo quando ele saltou para cima do móvel de onde saíra, como que adivinhando o meu gesto retardado pela sonolência em que, talvez, ainda me encontrava.
De repente levantei-me da cama disposto a apanhar o meu arlequim e, em voo, lancei-me sobre o guarda-fatos, mas apenas o pó ficou preso às minhas mãos e uma gargalhada estrídula abalou os meus ouvidos. Escapou-se o arlequim, mas a teimosia conseguiu vencer o desânimo e, decidido, entrei em luta sem tréguas contra um inimigo que era só gargalhadas, cada vez mais infernais. Revolvera já o quarto todo. Destruíra livros. Rasgara, até, desenhos. Mas só ao partir, inadvertidamente, o espelho do guarda-fatos vi cair a meus pés o corpo minúsculo do meu arlequim, agora desconjuntado como um boneco de feira sem a animação hábil de umas mãos de artista cuidadoso. Jazia ali, no soalho, o meu pobre arlequim, morto como um coelho, pálido e sem guizos, como se o som que se ouvira fosse mais produto de uma alegria interior do que de meros apêndices, que murcham como flor viçosa colhida em pleno suão.
Destruí o espelho que era, afinal, o seu mundo, um mundo de resíduos de experiências, formado por limites ópticos a que o acaso proporcionou vida e que o acaso matou, como que para denunciar a existência destes seres que, talvez, sejam parte integrante de nós. Destruí o espelho que era, afinal, o meu mundo, um mundo que me subjugou um ano inteiro, que me excitou nas horas mais laboriosas e que me apoiou toda a obra que, conscientemente, produzi à sua frente, como sacerdote noviço exercitando-se nas práticas litúrgicas.
Sim, foi esta permanência avassaladora de imagens todos os dias renovadas, esta transmissão de angústias sempre crescentes, que lhe deu um espírito próprio reflectido, uma razão de ser equidistante de uma personalidade real, activa, sincera.
Compreendo, agora, que o meu arlequim se vinha despedir, para sempre, na última noite que eu passava naquele quarto, um quarto que tinha já vida própria, onde se respirava a cor dos quadros espalhados pelas paredes, paredes que, talvez, ainda hoje ecoem os repetidos e teimosos gestos de criação...
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora", 1961.

22/04/2006

Fotografia de Teresa Fonseca.

Terceiro

Sinto no coração o momento. Vejo todas as coisas e é como se não as reconhecesse. Tudo está vendado sem venda. As formas são um centésimo fugaz e depois o esquecimento. Hoje sei a verdade. Já não me canso. Através dela ouço e cheiro. Mas o que vejo arquitectado está para além de tudo. Então esqueço-me dos nomes. E dos lugares a que as coisas pertencem. Sei que o mundo é longe e tem um céu por cima. Talvez esta cegueira se deva à clara e espontânea lucidez de quem enfrenta Deus e para ele avança. Tal qual como no cimo de um verso mudo há um grito dentro que deflagra uma coisa incompreensível. Mas eu não grito por pudor. Além disso para quê gritar? De que serviriam os gritos? Assim continuo. É importante continuar.
Eu amei.
O meu corpo empertiga-se no esforço de absorver o redor. A crença é agora a minha fé, a minha força, apesar das rezas. Pois sempre rezei. Fui ensinado a rezar, a acreditar, e rezei, e acreditei porque era pequeno. Quando se é pequeno acredita-se e reza-se aquilo que nos ensinam. Mas logo depois cresce-se e nunca mais se acredita nem reza. Nem nunca mais se é pequeno.
O fim do corredor. A porta está fechada. A maçaneta atenta à mão como o coração a uma resposta. Sente-se o fulgor. Sente-se o frémito. Um dos guardas avança. Ouve-se um estalo. Fecho os olhos. Uma voz vergasta o espaço sentenciado: condenado à morte. A voz percorre a distância aceite por Deus. A porta fecha-se. O burburinho desvanece-se. Abro os olhos.
Respiro.
Sandro William Junqueiro, inédito.

20/04/2006

Rosa Madame Meilland.
Fotografia de Augusto Mota.

Pedido de Socorro Às Rosas

Peço às rosas que venham ajudar-me:
Estendam as pétalas como mãos de ternura
E acolham minha alma e o corpo em sofrimento -
Com seu perfume, atravessem-me a carne,
E depois,
Deponham-me suavemente na pira da tarde,
Para que a chama em que cada uma arde,
Me reduza a cinzas
E me leve o vento.
António Simões, inédito.

19/04/2006

Dois lembretes ... qual deles o mais importante ...

Dia 23 de Abril.
Dia Mundial do Livro.
I
Pegue nos livros que queira, dedique a alguém que não conheça e deixe num sítio especial. Quem sabe se o seu livro favorito não vai dar a volta ao mundo?
Que boa maneira de dar, receber ... e ler!
Dê a conhecer aos seus amigos este "ataque" de leitura!!!

II

Aproveite o Dia Mundial do Livro

e compre livros.
Porquê?
clique

Proteja a floresta, dê vida ao futuro.

Campanha de sensibilização.

2005 foi um ano trágico, durante o qual travou-se uma luta diária contra o fogo. Uma batalha que não vencemos, como mostram os números dramáticos. Só um grande empenho por parte de todos, poderá salvar o património florestal. Para que a sua floresta seja também a dos seus filhos, ajude a combater os incêndios. O seu contributo é fundamental.

Assim,

de 1 de Outubro a 3o de Junho, deve:

. Limpar uma faixa de pelo menos 50 m à volta das habitações, estaleiros, armazéns, oficinas ou outras edificações nas zonas rurais;

. Limpar uma faixa de pelo menos 10 m de cada lado dos caminhos;

. Proceder à manutenção dos pontos de água e infra-estruturas.

De 1 de Julho a 30 de Setembro*, é proibido:

. Fazer fogueiras, queimas de sobrantes e queimadas;

. Fazer fogo de qualquer espécie, fora dos fogareiros ou grelhadores fixos;

. Lançar foguetes, fogo de artifício e balões com mecha acesa;

. Realizar acções de desinfestação e fumigação em apiários sem dispositivos de retenção de faúlhas;

. Fumar ou fazer lume nas áreas florestais.

________________________________________

* este período pode ser alterado devido a condições meteorológicas excepcionais.

visite o site

http://www.forestis.pt/campanha/campanha.htm

e dê vida ao futuro.

17/04/2006

Tropismo. Augusto Mota. 1960.
59 cmX79 cm. Tinta plástica sobre platex.

recordações de um escravo romano

Outrora fui escravo romano e dedicava-me a copiar manuscritos já anteriormente copiados. Fui, portanto, o elo de uma cadeia editorial que os gregos implantaram na Roma decadente. Fui, acima de tudo, o responsável pela transmissão de um saber cada vez menos original e cada vez mais degradado. E só assim se compreende que a cultura helénica não tenha permanecido viva até hoje! Sim, é a essa cadeia de escravos-escribas que imputo a derrota intelectual da Grécia em apogeu.
Jamais alguém ousou afirmar tal coisa, mas eu faço-o como meio de libertação de um pesadelo que há séculos me atormenta. Não receio críticas, nem, tão pouco, a erudição histórica dos nossos intelectuais que ainda se não cansaram de repetir a queda dos impérios e o florescimento das repúblicas, baseados em "documentos autênticos"... Não, não vos receio homens de teoria, profanadores inconscientes dos templos sagrados, violadores incríveis dos túmulos dos faraós, comerciantes autênticos da beleza virginal das estátuas clássicas! Sim, onde está a vossa humanidade e o vosso sincero discernimento perante a grandeza das civilizações passadas?
Vós, traidores inconscientes da humanidade, abandonai os ousados projectos de reabilitação das figuras históricas, porque elas se reabilitarão a si mesmas nesta vida até à eternidade! Não apresseis o conta-gotas da clepsidra do tempo, porque essas figuras se repetirão em formas e em factos, deixando à imaginação de cada um a capacidade máxima de condenação ou de integração na verdadeira escala do homem.
Eu próprio fui, como vos disse ( e neste momento dirijo-me também a vós intelectuais da História ), escravo romano e dedicava-me a copiar manuscritos anteriormente copiados. Reconheci já, também, a minha colaboração na derrota da hegemonia cultural da Grécia, mas, posso agora afirmar, tal colaboração não foi intencional, nem presidiu a ela qualquer intuito de vingança pelo facto de estar a trabalhar para os estrangeiros conquistadores, ou qualquer ressentimento pela minha condição de escravo. Aliás nós, escravos romanos, éramos uma classe superior em espírito, pois nos estava incumbida a tarefa de prolongar a Grécia intelectual, de afirmar um passado num futuro, através daquilo que é mais real no homem - o seu espírito. E, antigamente, embora houvesse sentimentos mais bárbaros, havia também, apesar de contraditório, uma compreensão mais humana do homem. Sentia-se o homem como animal racional e como animal e como racional era tratado. Ignorar o animal no homem é ignorar o homem. O homem não poderá, jamais, ser um génio divino, mas todos os homens - ou o homem universal - poderão constituir uma consciência poderosa que os leve a esse génio. A temporalização do génio humano é um fracaso da nossa civilização desunida em busca de uma verdade única e individual, desagregando-se em átomos de incompreensão e caindo na animalização total das virtudes racionais concedidas ao homem-animal.
Aqui voltamos ao ponto, há pouco referido, da reabilitação das figuras históricas, que acaba por coincidir com a alusão ao homem universal e à construção da tal consciência poderosa que, deve-se agora dizer, tem um carácter eminentemente impessoal e fora de qualquer localização histórica, projectando-se desde os momentos proto-históricos da existência das primeiras consciências individuais até para lá das impossíveis hipóteses de sobrevivência das galáxias imaginadas.
Entretanto vamos guardando a certeza de que as tais figuras históricas se reabilitarão em nós e por nós, dentro do tal plano de repetição de factos do passado. Condenaremos as que não se integrarem no conceito exigido de inteira realização humana; exaltaremos as que se elevarem a um plano máximo, figuras típicas de todas as civilizações, símbolos recorrentes que os espíritos fracos e sem imaginação tendem a idolatrar, caindo-se, por vezes ( isto é, em determinadas épocas históricas ), na feitura de novos mitos e de novas religiões.
Deixemos os historiadores continuar na sua labuta arqueológica, desenterrando falsidades dos arquivos imperiais, entorpecendo a imaginação com uma arreigada submissão à ordem histórica tradicional, construindo hipóteses quando deviam ter certezas, se o ópio da razão os não iludisse com uma necessidade de lógica coerente... Quantas vezes não param eles a História por falta de imaginação? Em outras circunstâncias invertem os factos e deturpam as formas com a certeza tradicional que a sua formação académica lhes forneceu, só porque negam à imaginação qualquer possibilidade de afirmação científica, ignorando, assim, o fundo colectivo inconsciente que preside a todas as acções humanas.
Nesses tempos em que fui escravo romano transmiti uma falsidade que até hoje se tem repetido e da qual sinceramente me envergonho. Aliás esta prática de deturpação da matéria copiada era frequente entre nós, os escribas, e com ela gozávamos estupidamente, porque, no fim de contas, alguns desses documentos apócrifos, que os historiadores encontraram, fundamentam hoje o edifício-chave de toda a construção histórica. Eu sei que éramos demasiado imaginativos para nos atermos à transmissão de um saber já feito e, para nós, escravos romanos submetidos ao jugo grego, insuficiente e sem qualquer interesse. Por isso talvez a nossa inconsciência seja perdoada! A imaginação forçava-nos a devaneios, obrigando-nos a transmitir uma cultura mais tarde atribuída a outros e que nós forjáramos em horas de distracção. Construímos, até certo ponto, um sistema válido, embora não correspondesse à verdade que os gregos nos impunham, sistema esse que poderá, legitimamente, pôr em causa a ideia do florescimento da cultura helénica, já que assenta em invenções declaradamente romanas.
A falsidade que transmiti continuará em meu segredo. Confessei a minha culpa e sinto-me aliviado com isso, mas nem sequer ouso referi-la, porque tal ocasionaria a destruição completa dos quadros históricos estabelecidos e a inversão total do conceito de verdade. No fim de contas fui vítima inconsciente da tal consciência universal, a qual pretenderia impor, talvez, um padrão de cultura às futuras civilizações e mostrar ao mundo as capacidades que animam o espírito humano e a possibilidade de constituir o ser universal num momento determinado da vida terrena. Tal foi impossível porque o génio grego estava demasiado afeito às capacidades racionais do espírito para se libertar em voos imaginativos. Foi o abuso da razão que os condenou e do seu génio só hoje prevalecem as formas perenes da mitologia que os iniciados de todas as religiões propagaram ao mundo e adaptaram a cada país. Assim se diversificou a ideia do ser único, a consciência universal, o génio poético. Mas a repetição da História, nas formas e nos factos, o reintegrará e, nesse dia, não mais haverá recordações de escravos romanos, nem de impérios, nem de repúblicas. Nesse dia o Homem alcançará o infinito através da sua imaginação.
Augusto Mota, in "Via Latina", jornal da Associação Académica de Coimbra, Coimbra, 8.2.1960.

16/04/2006

Manhã


Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar
Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão
Daniel Faria
( site oficial http://www.danielfaria.org/ )

__________________________________
enviado por Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com
Fotopoema 62. Augusto Mota.

15/04/2006

A Rosa e a Neve

O incêndio das rosas
nunca se apaga -
a chama é permanente -
É ver-se nas terras de neve:
esta funde-se
quando há rosas perto;
lá, o inverno
torna-se breve -.
António Simões, inédito.
" Páscoa".
Fotografia enviada por Adel Sidarus.

Aspira Núbeis Flores

Para António Salvado
Aspira núbeis flores que respiram
incautas*, não apagues as nuvens outonais,
nem as chamas de inverno,
pois a volúpia das palvras dormita,
no orvalho que coroa os teus dias festivos.
Aspira núbeis flores cobertas de música,
fulgor, ramos de oliveira.
As fontes do Hélicon acautelar-te-ão,
no limbo etéreo,
pois de pólen são as sílabas que derramas,
e o ardor que em ti grita não asfixia,
na dor marulhante, o clarão matinal,
onde vives, na dócil primavera,
o aroma suave da poesia.
Serena é a tua mansão de onde vês,
na vertigem rasgada, lírios, jacintos, nardos,
entre raros clarões,
relâmpagos de sonho, bátegas de luz.
Aspira núbeis flores, pois os astros
resplandecem, nos teus olhos,
repletos de vestígios antigos
- a voz das Musas em ti ouvirás sempre,
sobre elas derramarás a chama lenta
e fugidia da luz e da dor que,
em estrelas transformas,
na frescura clara da tua melodia.
Maria do Sameiro Barroso, in "Homenagem a António Salvado", Org. José Miguel Santolaya Silva, Salamanca, 2005.
______________________________________
*
António Salvado, in Poema "DEIXA O PORVIR EM PAZ...", Recapitulação, Estudos de Castelo Branco, Castelo Branco, 2005, pg. 28.

13/04/2006

Há 100 anos, no dia 13 de Abril de 1906, em Foxrock, Irlanda, nasceu ...

Samuel Beckett.
Escritor irlandês de expressão inglesa e francesa, provém de uma família burguesa e protestante. Estudou francês e italiano no Trinity College de Dublin.
Foi nomeado leitor de Inglês na École Normale Supérieure de Paris. Conheceu James Joyce, passou por Londres e pela Alemanha e fez parte da Resistência.
É, no pós-guerra, em 1945, que começa a traduzir para francês e a escrever poemas e novelas nesta língua.
Em 1953, escreve "À Espera de Godot", peça representada, em Paris, no Théâtre de Babylone, que, imediatamente, conhece um imenso sucesso, e assinala o início da carreira teatral de Beckett.
É, igualmente, graças às suas peças que adquire um tal reconhecimento que, em 1969, leva-o a receber o Prémio Nobel, cujo dinheiro distribui pelos amigos.
A sua produção teatral não é muito vasta, mas é, mundialmente, conhecida - "À Espera de Godot", "Fin de Partie", "Tous Ceux Qui Tombent" ( 1957 ), "La Dernière Bande" ( 1960 ), "Oh Les Beaux Jours" ( 1963 ), "Comédie" ( 1963 ) e "Comédie Et Actes Divers" ( peça radiofónica, 1964 ).
Morre em Paris em 1989.

11/04/2006

" Kerria japonica".
Fotografia de Augusto Mota.

pequeno poema

Rasgaste-me os olhos
antes da manhã acontecer.
Não com a colher do sono.
Fizeste-o com o bico laranja do melro que fere a romã.
Sandro William Junqueira, inédito.

10/04/2006

Legenda Íntima 104. Augusto Mota.

( vertigens )

Agora habita-me as pernas um horizonte estranho. Estou virado a norte e a ocidente queda-se o mar e o céu. Os pinhais escoam-se até aos joelhos e não me deixam andar. Os passos são outro sentimento para aquilo que empresto às mãos. Estas, por força da noite, entregam-se a outro caminhar que não sabe o que é a distância, nem o que é cansaço. São vertigens isto que tenho! Vertigens num mirante sobre a planície e a aula. Os alunos são camponeses e operários. Moços de lavoura todos nós o somos. A algazarra e os bois é que nos dão uma estabilidade de pessoas opulentas.
Sensações, sensações, sensações. Os óculos são um automóvel. Os olhos um corredor e eu um quarto encerado. Os passos espelham-se no lustro como se fora um palácio que me dessem para habitar. O mármore está nas veias. A escadaria são as pulsações. Quando entro em mim parece que há trombetas para saudar um visitante desconhecido. Régia corte esta! Alabardas sim, mas quero outro ritmo em toda esta diplomacia.
Augusto Mota, inédito, in "O Artifício da Loucura", 1964.

08/04/2006

Cerejeira em flor.
Fotografia de Augusto Mota.

Fragmentos Helénicos*

Para Eugénio de Andrade
O mar, o vinho e os seus reflexos
( as baías do Egeu ), a cal, o húmus,
um sol de espigas plenas,
o mistério das coisas simples,
um mundo de dimensões perfeitas.
Depois, as mãos, as raízes, os muros,
as manhãs odorosas.
Uma sílaba exacta semeando um átrio,
a primavera úbere,
um mosto quente de Setembro,
o vinho cristalino, o sabor dos frutos,
cristais de outono.
O inverno, uma rosa túmida,
Eugénio de Andrade.
Como quando li, pela primeira vez
e a poesia me envolveu,
em suas sílabas nocturnas,
luminosas,
como girassóis primordiais.
Maria do Sameiro Barroso, in "Primeiro de Janeiro, 31 de Março de 2003.
_______________________________
*www.oprimeirodejaneiro.pt
"Acer flamingo".
Fotografia de Augusto Mota.

07/04/2006

Postais da Tasmânia

2. As Aves Cantivoam
"Ó cousas todas vãs, todas mudaves,"
Eis que um verso de Sá de Miranda
Desce em mim, enquanto observo as aves
Que cantivoam aqui por esta banda.
Vejo-as voando livres, sem entraves,
Dos altos céus em alegre demanda,
E penso em meu país, nos rostos graves
De quem vive de reforma miseranda.
Farto dos faustos da fútil corte,
No refúgio da quinta do Minho,
Tua vida viveste recta e pura.
Se ora como então é má nossa sorte,
Se o Homem continua a ser mesquinho,
De facto, amigo Sá, "isto é sem cura."
A. Inocêncio Príncipe, inédito.

06/04/2006

Legenda Íntima 79. Augusto Mota.

o prelúdio do vazio

A espera é difícil como o silêncio que não atende os desejos e a distância. O tempo vai longo e esquecido dos anseios e das emoções. De longe apenas chegam os vibrantes aplausos do final da Patética de Tchaikovsky. Tudo parece conjugar-se para entristecer a noite e sublinhar o desconcerto da espera.
Que nova sinfonia ouviremos agora?
Já se anuncia o prelúdio do longo vazio que irá atravessar a noite. Estranha melodia esta que vive entre o silêncio e o desejo, entre a distância e o tempo, entre as trindades e o toque do amanhecer!
Que acordes ouviremos, então, na madrugada de nós?
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

03/04/2006

Fotopoema 61. Augusto Mota.

A rosa e a chama

Era o rumor da rosa
ardendo ali ao lado, no jardim?
A rosa estava lá fora,
certo.
Só que a sua chama
crepitava aqui mais perto:
dentro de mim.
António Simões, inédito.