23/04/2006

o arlequim

Repentinamente acordei sobressaltado com um estranho som de guizos bem metálicos, que me feriu os ouvidos como o canto despropositado de uma ave agoirenta. Acordei do letargo pesado em que me encontrava e esfreguei os olhos para dissipar qualquer dúvida. Mas não, não eram visões de pesadelo, nem delírio de uma vigília forçada. Arrepiei-me, ainda, com uma gargalhada tão estridente, que parecia continuar a agudeza metálica dos guizos que a princípio ouvira. Tudo se formou mais distintamente no meu espírito e as imagens sucederam-se fantasiosas, num desenrolar quase cinematográfico.
O espelho do guarda-fatos era como que um écran reflectindo a realidade do quarto e a própria cama onde me encontrava deitado e, ao mesmo tempo, revelava todo um mundo estranho de imagens inconscientemente acumuladas para além daquela fina película reflectora, que inicia um universo de focos múltiplos. Desenrolou-se toda a cena num sistema de fotografia animada, fantasticamente mesclada com uma realidade quase diluída de matéria palpável. Vi estantes e cadeiras esfumarem-se numa penumbra longínqua, enquanto figuras ainda irreais se aproximavam da face límpida do espelho. Guizos e mais guizos encheram de ressonância a caixa vazia do guarda-fatos e um ribombar, agora surdo, anunciou uma figura definida de minúsculo arlequim que, saltitante, pousou no puxador do guarda-fatos, tinindo sempre os guizos que lhe ornavam os pulsos e os tornozelos, como que para prevenir espíritos menos atentos a estas suas visitas tão súbitas.
Fixei, então, o arlequim e quase me dispunha a agarrá-lo quando ele saltou para cima do móvel de onde saíra, como que adivinhando o meu gesto retardado pela sonolência em que, talvez, ainda me encontrava.
De repente levantei-me da cama disposto a apanhar o meu arlequim e, em voo, lancei-me sobre o guarda-fatos, mas apenas o pó ficou preso às minhas mãos e uma gargalhada estrídula abalou os meus ouvidos. Escapou-se o arlequim, mas a teimosia conseguiu vencer o desânimo e, decidido, entrei em luta sem tréguas contra um inimigo que era só gargalhadas, cada vez mais infernais. Revolvera já o quarto todo. Destruíra livros. Rasgara, até, desenhos. Mas só ao partir, inadvertidamente, o espelho do guarda-fatos vi cair a meus pés o corpo minúsculo do meu arlequim, agora desconjuntado como um boneco de feira sem a animação hábil de umas mãos de artista cuidadoso. Jazia ali, no soalho, o meu pobre arlequim, morto como um coelho, pálido e sem guizos, como se o som que se ouvira fosse mais produto de uma alegria interior do que de meros apêndices, que murcham como flor viçosa colhida em pleno suão.
Destruí o espelho que era, afinal, o seu mundo, um mundo de resíduos de experiências, formado por limites ópticos a que o acaso proporcionou vida e que o acaso matou, como que para denunciar a existência destes seres que, talvez, sejam parte integrante de nós. Destruí o espelho que era, afinal, o meu mundo, um mundo que me subjugou um ano inteiro, que me excitou nas horas mais laboriosas e que me apoiou toda a obra que, conscientemente, produzi à sua frente, como sacerdote noviço exercitando-se nas práticas litúrgicas.
Sim, foi esta permanência avassaladora de imagens todos os dias renovadas, esta transmissão de angústias sempre crescentes, que lhe deu um espírito próprio reflectido, uma razão de ser equidistante de uma personalidade real, activa, sincera.
Compreendo, agora, que o meu arlequim se vinha despedir, para sempre, na última noite que eu passava naquele quarto, um quarto que tinha já vida própria, onde se respirava a cor dos quadros espalhados pelas paredes, paredes que, talvez, ainda hoje ecoem os repetidos e teimosos gestos de criação...
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora", 1961.

2 comentários:

Anónimo disse...

De uma força impressionante que nos transporta para dentro do quarto e nos faz assistir à guerra entre o arlequim e o autor/ o ser e o outro/eu.
Belíssimo texto.
Impressionante.
Parabéns, Augusto Mota, por esta beleza que nos leva ao Olimpo.

Anónimo disse...

A fotografia de Teresa Fonseca, publicada ontem, acordou em mim o sentimento muito meu conhecido de "estar não estando", de querer agarrar o que agarrar é impossível.

Estas palavras do Mota juntam-se a ela e sacodem dentro da minha alma a ambivalência das imagens/reflexos, repetidas, criadoras das angústias do arlequim que se vão acumulando umas sobre as outras até ganharem a tal " razão equidistante de uma personalidade real, activa e sincera".
Graças ao sol da manhã, dissipam-se as angústias do arlequim e a criação em gestos, felizmente teimosos, sublima a ausência transformando-a num cuidado jardim interior.
Por este dia, um grande abraço de solidariedade, Amigo !