Hoje acordei ainda não era manhã. Através da janela do quarto, com os olhos raiados pela insónia, vi morrer a noite.
Sinto-me cansado.
O meu corpo pesa-me como o corpo de um velho. Pois desde que recebi a ordem, nunca mais o meu sono teve a profundidade a que estava habituado.
Levanto-me e não tenho fome. Cambaleio de tonturas. Tenho que tentar beber um copo de leite que não consigo. Ajoelho-me e vomito. As minhas estranhas entranhas dobram-se numa poesia de orgãos: intestinos, baço, pâncreas, estômago, fígado, vesícula, esófago, traqueia. Um jacto acre e ácido é projectado da minha boca: restos de frango misturados com bróculos e vinho e whisky.
Afinal o que detém importância?
Se a carne gera a carne. A violência. O apego. O sofrimento.
Há coisas tão evidentes que não encontro palavras.
Reparo na fruteira postada em cima da bancada. Um par de laranjas - cansadas de terem amadurecido - ganharam desde ontem na casca uma penugem de cinza. Uma pele gasta e pútrida pelo ar. O peixe dá voltas e mais voltas. Tudo fenece à minha volta. Lavo a boca, os olhos e os sovacos. Desfaço a barba. Guardo no fundo do saco a farda engomada e antes de fechar a porta pouso os olhos na tua fotografia. Tu sorris. Desço rapidamente as escadas enquanto acendo um cigarro que me provoca uma tontura embebida em náusea. Quando chego cá fora o dia está insípido: nem quente, nem frio, nem vento. Apenas umas nuvens espapaçadas se levantam do horizonte como um bando de pássaros tristes. Lembro-me de imediato das chuvas longas, e das trovoadas, que o Inverno já entretanto abandonado, levou consigo. Ao menos a chuva, penso, enquanto deambulo pela cidade, sem rumo, à espera que a vida de súbito pare, e o meu destino não seja cumprido.
Paro no jardim. Sento-me num dos seus bancos verdes, mais antigos. Ouço os melros assobiarem suspensos nos ramos. Vejo num dos canteiros à minha esquerda, sobre a relva fulgente, uma cadela encarquilhada sobre si, numa pose esteticamente reprovável, a estremecer sofregamente, a fazer força para que a merda a abandone. Com o barulho das patas a esgravatar a terra húmida. Com as flores pardacentas que despontam dos canteiros. Com os ramos altos dos olmos como halos desprendidos das almas. Com os passos. Sempre os mesmos passos. As mesmas pedras. Sempre as mesmas pedras pisadas dez mil vezes pelos mesmos passos. Dez mil passos. Dez mil vezes. Dez mil pedras. Dez mil ruas. O alcatrão. O sol como uma tangerina em chamas. As beatas dos cigarros mortos. As cinzas acordadas pela calçada. Os pátios vazios de pombos e jogos. Pelos meninos que um dia fomos, que queriam crescer à força, pelos meninos que já não são. E as gruas. As máquinas amarelas. O cimento. O vermelho. O betão armado. As casas. Os santos. A igreja. Os altares. Os talhantes. As floristas. Os cafés. As mesas cheias de aguardente às nove e meia. Os homens vivos. Os homens mortos. Os homens vivos com cara de mortos. Os transeuntes. Os benfeitores. Os rotinados. Os ignotos. Os nauseados. Os pestilentos. E nas faces o rumor do triste, os braços de desânimo paralelos ao tronco. O saco a tiracolo que aos poucos se torna um fardo. A merda da cadela já arrefecida, um torcido duro, uma porcelana de barro, plena de arquitectura em cima da relva. Grito. Levanto-me. Fujo. Corro. Entro no café. À procura de distracção? Talvez da fome ou do esquecimento. Fumo um e outro cigarro.
Choro convulsivamente.
Peço a conta.
Penso no oco dos dias.Sandro William Junqueiro, inédito, in "Cadernos do Algoz".