Brava maravilha
Sepultei o meu Pai no exacto dia em que a
Revolução dos Cravos fez vinte anos. Ambos mortos a essa data, revolução e ele.
Tinha então a primeira das minhas filhas quatro meses e oito dias: a
transmissão estava em marcha.
Um Pai não morre – os filhos é que se
perdem dele. Deve-se isto ao facto de a morte ser apenas deixar de estar, não
deixar de ser. Creio nisto. (Sim: não apenas descrenças me animam, da vida, o
mote e as voltas.)
Dezanove anos são ora cumpridos sobre esse
dia em que não choveu. Há um ano, portanto, que é maior de idade a minha
orfandade patriarcal: já pode votar. Tenho sido bom eleitor: perdi-me da minha
Mãe fez este Março dois anos. Nascera-me todavia entre os dois óbitos uma outra
menina: a transmissão seguia (e segue) marchando. A vida pode ater-se; a vida
pode conter-se – mas nunca se detém. Brava maravilha é que assim seja.
Escrevo estas linhas a um domingo. A longa
ferida do Inverno parece sarada. É pelo cair da tarde. Pouca gente por ruas e
praças. Há mais pombos do que pessoas. Um que outro cão vadiando pela
temporalidade desertada como filósofos existencialistas de cunho católico à la
Gabriel Marcel. Tenho moedas, vou ao Café da Rosa poetar as minhas crónicas
patetices decassílabas. Em casa, a mulher penelopa a miríade têxtil do bordado
aceso: sou dela o pretendente único, Ulisses de viagem nenhuma. (Alguém vomitou
no fontanário de que já não mana a água que era de todos. Por onde
congestion’andará a cirrose desse anónimo roxeador de fontes em pedra?)
Já a noite urde (arde) aos poucos a sua
autoridade invencível, já dela o manto pipila estrelas de robe de mágico. Como
aparado crescente de unha, já a velha Lua se faz numismática no argênteo
firmamento. É tudo (ele)mental – sem ansiedade, sem esperança, sem dívida e sem
remissão. É tudo muito bonito, também. Arrefeceu.
Sim, também o deserto é formoso. Sabes,
aquela areia em ondas como o mar em dunas estriadas à espuma do vento, à escuma
dos dias/anos/décadas, não tarda séculos, um que outro milénio como esses cães
por essas praças e ruas vadiando, existenciais, o domingo.
Nenhuma quimera e nenhuma utopia. Onde foi
a retrosaria, é hoje a agência bancária. Onde a livraria, hoje uma seita-maná
qualquer. Onde a infância, hoje esta ferrugem úrica nas dobradiças de rachada
cartilagem. As filhas crescem-me, porém.
Leva-me (ou traz-me) esta derradeira
verificação, em nave (ou neve) do Tempo, à antevéspera do passamento do meu
Velho. Levara-o eu ao hospital. Já a terminação lhe esbofeteava o semblante:
era como um cego sem lotaria que apregoar, quanto mais vender. Deitado no
lençol impessoal tatuado a carimbo (H.U.C.),
regougava ele, como um cisne de asas quebradas, a respiração muito afadigada. Olhei-o muito, que me não via. Tinha os
lábios causticados da febre de tantos anos terçãos e malsãos. Tinha a boca
enlameada a branco do pó de tantos comprimidos sem remédio. Tirei-lhe a placa,
fui lavá-la, remeti-lha na boca que já não dizia o meu caminho. Olhei p’la
janela da enfermaria (enfer, Marie!)
como ora olho as linhas que lhe/vos escrevo. Precisei de ir-me embora.
Baixei-me ao ouvido dele, disse-lhe: Pai,
amanhã volto. Disse-me ele: Eu também.
Até hoje.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 25 de Abril de 2013
Foto de Augusto Mota