04/06/2013

BAILE SOZINHO ou O INVERNO DE QUELUZ - 26 e 27

 
 
 
 
                                                                   Cacto (Echinocactus grusonii)
 
Leiria, manhã de 10 de Maio de 2013, sexta-feira
                      
                                 26
 
É preciso ter passado, como eu passei, por vilas desertas ao domingo.
É preciso não ter nada em frente senão um salário.
Eu sabia que ia ficar para sempre na Música.
Sabia também que não me sustentaria dela mas para ela.
Suturava feridas invisíveis nascidas da fome de saber.
Como no Verão de 1991.
 
No Verão de 1991 trabalhei por conta de um homem que eu já era.
Perto, o regato mal respirava,
saturado de sol como estava. 
Fazia as refeições num reservado invisível também:
como se celebrasse uma missa agnóstica
à impossibilidade de Deus e ao mistério do Corpo.
 
Derredor, na volta da fonte, mulheres alheias cacarejavam
as notícias vilãs com essa tão portuguesa fúria alegre
que resulta do comentário da desgraça dos outros.
Habitava eu então um quarto muito branco
de cuja janela se me oferecia o mistério simples do dia,
que invariavelmente pintava cegonhas e campos de arroz.
 
Quando a alguém da Filarmónica morria um alguém seu,
fardava-me para integrar as honras da Música
à pessoa perdida. No fim, embebedávamo-nos sempre,
pois que é ponto assente a libação vínica contra
o desmando escandaloso da morte.
E o jornal íntimo se me manchava em furor sereno.
 
                              27
 
Não eram ainda as sete quando a alva me levantou.
Saí do poço que imita a morte, dei-me ao ofício de renascer.
Procurei no escuro o fato para não despertar a Mulher.
Açucarei água na cozinha, que bebi de pé não devagar.
Senti as escadas desdobrarem para mim a rua.
E depois cumprimentei o senhor Eduardo que vinha com o neto.
 
Às tantas de ter 49 anos, uma pessoa já sabe o prémio do dia.
Na mercearia do bairro, caixas cantam alto a fruta.
De coxas gordas, varizmarmóreas, a senhora Juliana beijarica o canário,
que é claro como o limão e como o pão novo.
Nada me custa alcançar o Rio, sabendo nas costas o nascimento.
O nascimento & morte.
 
Quando chego, estou de partida.
Assim como toda a gente toda a vida.
Exerço então o lápis qual florete,
esgrimindo o puro minério (a pura chispa) do Verbo.
Almoço a saturação da Música, das casas encerradas
à passagem do rei morto.
 
Canto para dentro o meu Sá, o meu Garção.
Finjo que não componho qualquer canção.
Ponho-me a arabescar as árvores maiores
enquanto desfloro rosinhas de, digamos, torrão-de-Alicante.
Então, a glória banha-me todo, torna-me lustral
como uma tocha de gelo, como um homem para o fogo.
 
Daniel Abrunheiro
 
       
 
                                                                     Pútegas (Cytinus ruber)
 
 
 
Fotos: augusto mota
 



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