OS TRAPOS
Envelhecemos, deveras e de vez, quando deixamos
de praticar a eternidade. (A de cada dia, digo, que a não a outra, a de mentira
das seitas autistas-evangélicas, essas matilhas engravatadas que andam de Deus
na boca como cães que não desmordem o osso.)
A eternidade é aquilo que as crianças são de cor
– e às cores. Certa idade madura existe que, não desprovida de lucidez, logra
até assomos de felicidade, consistindo esta num ardil simples. É o ardil do
alzheimer voluntário: esquecer a morte, deixando-a dissipar-se como pretérito
hélio de balão passado, inútil (e nociva até) para o dia-a-dia.
Mas os velhos existem – e nem todos o são pela
idade. Todos os dias os vejo por esta galeria que erigi em observatório
mundial. Andam devagar, rasteirados pela exasperante areia que (n)os não deixa
fugir, essa areia de quando, nos sonhos, o pânico nos congela o sangue.
Parecem-me pombas golpeadas pelo falcão da irreversibilidade. São de uma
castidade involuntária. O mais alto acontecimento deles é respirar ainda, ao
alto de uma digestão de lâminas dispépticas. Casas que ameaçam derrocada, não
têm a quem abrir a janela do que viveram. Têm pena, e raiva até, de que deles
saibamos tão-só a história de irem morrer como se para nada mais houvessem
nascido e sido. Semelham, um a um, lojas de centro comercial que, uma a uma, se
liquidam as existências antes de, de vez e deveras, fecharem a porta e dar a
chave ao gato.
Volvem-se aquíferos tártaros pelos mesmos poros
por onde outrora jorraram salubridades chamadas filhos. Hibernam em pleno Verão, imunes à estupidez malévola dos
netos, que entretanto ascenderam ao púlpito das freguesias, dos municípios, das
secretarias de Estado e dos sobreiros trocados por submarinos em vez de, ao
menos, helicópteros para o bombeiral.
Os velhos são a ominosa e luminosa evidência,
por obscuro contraste, de que tudo arde. Não só, como hoje, à inclemência de
Setembro, a tarde – mas a própria vida, a vida mesmo. Alienados, por deles e
para eles, feliz nesciência, das tropelias malsãs do quotidiano, vegetam
iodadamente numa espécie de algodão já surdo às premências mais básicas: comer
um morango entre risadas de champanhe, soletrar sílaba a sílaba a carnação
suculenta & suco & lenta de um ser que se nos dispa, reler Cesário
Verde sem segundo resgate da Troika – e não necessitar ainda da perícia
benevolente do doutor Vítor Martins do Hospital de Santarém, que, por assim
dizer, miniaturiza no coração a vontade pacemaker
de viver, nem que seja só mais um bocadito.
(Explicação, em prol e/ou prece da cumplicidade
do meu leitor: dá-me sempre para isto, cada vez que Setembro volta a fingir que
é o mesmo Setembro de antigamente. “Para
isto”: isto é: para, verso/velho/a/velho/verso, reiterar a necessidade
outonal do húmus, que é a latência polar do Inverno, que sagra à Vivaldi e à
Stravinsky a Primavera que tudo, como tudo e como vereis, Verão será.)
Foi que, como esta manhã, mal ainda se anilando
a alva no alvor entrecortado do morse dos estores e raspando-me eu a barba, o
pequeno milagre da repetição quis ser mais novo do que trapo: ao espelho, a
barba era minha que se ia, mas vinha dos olhos o olhar que foi, e há-de ser, o
do meu Pai, esse trapo.
Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 5 de Setembro de 2013.
Foto: Augusto Mota