05/09/2013

Rosário Breve



OS TRAPOS





Envelhecemos, deveras e de vez, quando deixamos de praticar a eternidade. (A de cada dia, digo, que a não a outra, a de mentira das seitas autistas-evangélicas, essas matilhas engravatadas que andam de Deus na boca como cães que não desmordem o osso.)
A eternidade é aquilo que as crianças são de cor – e às cores. Certa idade madura existe que, não desprovida de lucidez, logra até assomos de felicidade, consistindo esta num ardil simples. É o ardil do alzheimer voluntário: esquecer a morte, deixando-a dissipar-se como pretérito hélio de balão passado, inútil (e nociva até) para o dia-a-dia.
Mas os velhos existem – e nem todos o são pela idade. Todos os dias os vejo por esta galeria que erigi em observatório mundial. Andam devagar, rasteirados pela exasperante areia que (n)os não deixa fugir, essa areia de quando, nos sonhos, o pânico nos congela o sangue. Parecem-me pombas golpeadas pelo falcão da irreversibilidade. São de uma castidade involuntária. O mais alto acontecimento deles é respirar ainda, ao alto de uma digestão de lâminas dispépticas. Casas que ameaçam derrocada, não têm a quem abrir a janela do que viveram. Têm pena, e raiva até, de que deles saibamos tão-só a história de irem morrer como se para nada mais houvessem nascido e sido. Semelham, um a um, lojas de centro comercial que, uma a uma, se liquidam as existências antes de, de vez e deveras, fecharem a porta e dar a chave ao gato.
Volvem-se aquíferos tártaros pelos mesmos poros por onde outrora jorraram salubridades chamadas filhos. Hibernam em pleno Verão, imunes à estupidez malévola dos netos, que entretanto ascenderam ao púlpito das freguesias, dos municípios, das secretarias de Estado e dos sobreiros trocados por submarinos em vez de, ao menos, helicópteros para o bombeiral.
Os velhos são a ominosa e luminosa evidência, por obscuro contraste, de que tudo arde. Não só, como hoje, à inclemência de Setembro, a tarde – mas a própria vida, a vida mesmo. Alienados, por deles e para eles, feliz nesciência, das tropelias malsãs do quotidiano, vegetam iodadamente numa espécie de algodão já surdo às premências mais básicas: comer um morango entre risadas de champanhe, soletrar sílaba a sílaba a carnação suculenta & suco & lenta de um ser que se nos dispa, reler Cesário Verde sem segundo resgate da Troika – e não necessitar ainda da perícia benevolente do doutor Vítor Martins do Hospital de Santarém, que, por assim dizer, miniaturiza no coração a vontade pacemaker de viver, nem que seja só mais um bocadito.
(Explicação, em prol e/ou prece da cumplicidade do meu leitor: dá-me sempre para isto, cada vez que Setembro volta a fingir que é o mesmo Setembro de antigamente. “Para isto”: isto é: para, verso/velho/a/velho/verso, reiterar a necessidade outonal do húmus, que é a latência polar do Inverno, que sagra à Vivaldi e à Stravinsky a Primavera que tudo, como tudo e como vereis, Verão será.)
Foi que, como esta manhã, mal ainda se anilando a alva no alvor entrecortado do morse dos estores e raspando-me eu a barba, o pequeno milagre da repetição quis ser mais novo do que trapo: ao espelho, a barba era minha que se ia, mas vinha dos olhos o olhar que foi, e há-de ser, o do meu Pai, esse trapo.



Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 5 de Setembro de 2013.

Foto: Augusto Mota

2 comentários:

Mário Sérgio Felizardo disse...

Magnífico como sempre o Daniel Abrunheiro e que eu tão tarde descobri...

Daniel Abrunheiro disse...

Sou-vos grato.