28/05/2015

Rosário breve



MEMÓRIA DOUTRO INVERNO





Chamavam-lhe respeitosamente “Senhor Arquitecto”.
Todos os dias fazia de comboio Figueira-Coimbra-Figueira. Vestia-se de preto como uma andorinha anacrónica. A cabeça subia para um chapéu de judeu velho. A gravata parecia uma guita de embrulho de loja de ferragens. A camisa, outrora branca, mostrava o enxovalho têxtil dos homens que vivem sós. Inverno ou Verão, caminhava munido de um guarda-chuva maior do que a tristeza a que chamávamos “mata-cães”. O Senhor Arquitecto era um holograma do passado, Tinha o ar irrefutável de quem aparece do nada para ir a nenhures. Regressava de Coimbra com quatro livros novos. Todos os dias, quatro livros novos. Imperturbável, folheava-os num transe de alheamento que impunha o silêncio em torno dele, como sucede com certas árvores e certas dores.
Cheirava tremendamente a alho. Numa tarde do Inverno de 1988, chovia tanto, mas tanto, que o mundo visto do comboio aparecia mais desalmado do que um fim de amor. A carruagem vinha atulhada de gente. O Senhor Arquitecto sentou-se no único lugar disponível. O bafio a alho tomou imediatamente conta do lugar. Folheava ele os livros novos naquele dia hoje antigo quando uma mulher tirou do saco de compras uma embalagem de desodorizante do ar. Com dedo firme e quase morta de riso, espraiou na atmosfera exígua do compartimento uma nuvem de eucalipto químico. Os passageiros conseguiram sufocar o riso até que o velho homem, percebendo que aquilo do spray era com ele, abandonou sem uma palavra aquele recinto popular. Então, o maralhal desatou à gargalhada. Alguém abriu uma janela até que o alho e o eucalipto se dissolvessem no ar afiado de chuva.
Segui-o. Havia dois lugares noutra carruagem. Ele escolheu o de costas para o destino; homem sábio. Sentei-me de frente para ele. Então, ele olhou-me. Eram olhos de outro século, pérolas de fundo de poço, olhos que vêem para dentro.
Eu disse: Tanta chuva, Senhor Arquitecto.”
Ele disse: Sempre gostei do Inverno.”
Depois calámo-nos. Ele voltou aos livros. Eu pensava que àquela hora estava a chover no mar, tendo-me vindo à mente a frase de Mercê Rodoreda: “Como se o mar não tivesse já água suficiente.”
Nunca mais o vi. Os anos levaram-mo, supunha eu que para sempre. Até que hoje, tendo despertado sem remédio às seis da manhã, amanheci a pensar nele, não exactamente nele, mas no enorme guarda-chuva dele. Que será feito de tal objecto? Que sucede às coisas que substituem a memória dos mortos, que no-las fazem perder?
No meu quarto de ocasião, como que em resposta, uma ligeira fragrância de alho palpitou no escuro, Na rua, senti que começava chovendo. Também sempre gostei do Inverno.


 


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 28 de Maio de 2015


(NB: Esta crónica é uma republicação, coisa repescada de um livro meu já antigo de uma década quase. Mas decidi-me por ela in memoriam viva do Dr. Luís Eugénio Ferreira cumpridor da palavra, e do óbolo, por ele dada e dado ao Barqueiro. Se o meu Leitor quiser, pode trocar o título da presente crónica pelo de “Solilóquio IV”. Ele perceberia o recado, que é saudoso já.)


Edição e fotos: Agusto Mota 
Foto de cima: Entrada noroeste do Parque dos Poetas, Oeiras
Foto de baixo: Postigo de uma velha porta numa casa abandonada, Óbidos

Letra para um fado






FADO DE AR


Diz-se que o ar não tem cor,
Mas nessa eu não acredito,
Basta olhar, por favor,
Quando é hora do sol-pôr,
Para a cor do infinito.

Ele é a grande redoma
Que envolve todo o planeta –
Se a nuvem ao alto assoma,
Voa a águia e voa a pomba,
E também a avioneta.

Eu vou pegar num balão
E enchê-lo num momento –
Ponho lá o coração,
Vai leve como o balão
Para onde for o vento.

Quando ao pé de mim escuto
O teu brando respirar,
Na paz do nosso reduto
Há silêncio absoluto,
Fica à escuta o próprio ar.

Dos elementos és rei,
Desses quatro principais;
Mal eu nasci, respirei,
Ó ar, sem a tua lei
Ninguém vivia jamais

                        António Simões


 edição e foto: augusto mota 


14/05/2015

Rosário breve




25  MENOS  25  IGUAL  A  28


 


Sentado em perfeita solidão no banco da paragem, espero o autocarro da carreira 27, o das 19h45m. Calor. Inconstante como a vida, o meu Maio natalício esteve de radiador ligado o dia todo. E que me oferece a espera, primeiro, e a viagem, depois? Oferece-me números:

1. A derradeira dança do pombal pelo entardenoitecer. Umas duas dezenas e meia delas voando em formação ordenada, elíptica, comandada por um qualquer instinto gregário e aerotopográfico que não sei azimutar, muito menos explicar. Constituem uma forç’aérea muito bela e muito poderosa no azul-ferrete terminal do firmamento. Um pouco mais alto do que elas, todavia, mas delas ameaçadoramente não muito longe, sobrevoa-as um milhafre. De rapace solidão é a figura dele. Lento, pensativo, calculista, armado até aos dentes que aliás nem tem, merece-me uma alcunha má: Carlucci.

2. Derredor, o arvoredo incólume do planalto (cedros, mormente) matiza uma álea de sombra em refresco. Estão, ainda, vinte & muitos graus centígrados. A esquadrilha columbina desapareceu (para) já. O milhafre, não. Dele, a linha escura tem qualquer coisa de traço cuneiforme, de caligrama chinês, de cabide sumério. Não o odeio nem o venero – vigio-o, tão-só.

3. A quatro minutos do horário, passa-me defronte um quarentão de chapéu amarelo fitado de azul, pele tisnada daquele inequívoco açafrão típico do pica-heroa, rabo-de-cavalo a precisar muito de água-sabão. Vai labiando, como se charutasse um habano, um mata-ratos enrolado à mão que rastilha pelo ar uma espiral pró-hílare de oleaginosa essência de Marraquexe. No preciso entrementes mesmo, cruza a via (mas oh quão majestosamente!) um luzifelídeo, vulgo gato, de pêlo tipo carvão refractário, qual tocha negra de todo alheia e imune a tudo isto a que, se calhar por inconsciente auto-sarcasmo, chamamos “civilização”.
  



4. Tudo isto é pela hora a que os Antigos chamavam “noitinha”, mimoseador diminutivo da tenebrosa incógnita que a Noite é, foi sempre & sempre será. Eu chamo-lhe “entardenoitecer”. Eu chamo-lhe “luzcofuspúsculo”. Espécie de, digo eu, “eterni’tarde”. 0u de “peren’oite”. Acaso, ocaso tudo, qual seja o nome.

5. A bordo já do 27, colecciono os terminais lampejos solares que faíscam nas cúpulas dos prédios de mais altos cristais: frechas de ouro oblíquo, dardos de platina torrada. Mas também se me dá a recepção de certa pré-lunaridade na progressiva quietação: dirigindo-me eu a certa reunião (às 21h00m em ponto) de deserdados & desencaminhados do viver meus afins, recebo os sinais do vulgo humilde – a evidente fadiga dos trabalhadores em fim de jornada, a volatilização em éter dos desempregados cansados de enxamear sem préstimo o mundo-colmeia das abelhas-ainda-assalariadas, o cego de caixa-fenda-esmoler ao peito reenrolando os naperons das cautelas que ficaram por vender à pequena-sorte, o par de namorados partilhando a botelha plástica de água morna mercê de mole câmbio ósculo-beijoqueiro, a autoridade da incerteza pesando os quilogramas do Destino.

6. E ainda se me oferece saber, via «O RIBATEJO» da semana passada, que o “pacu”, peixe parece que familiar da sinistra e dentívora piranha, prolifera no fluvial-tomarense Nabão. E tanto prolifera ele, ouço dizer, que já lhe dá para migrar do rio para a seca Assembleia Municipal de Santarém, pardieiro-capoeiro onde andam urdindo a troca festivo-fogueteira do 25 de Abril pelo 25 de Novembro. O de 1974 pelo de 1975, portanto. O pacu anda armado em milhafre, por modos. Mas é mentira. O pac(arl)u(cci) não é nada o 25/XI/75 que quer festejar. É o 28. De Maio. De 1926. É, é. Repete a desgraça da História quem não engraça com a lição da memória.

Digo-vos eu tão-só isto: cuidado, garnizés, que as pombas ainda um dia se cansam de tanta mansidão. A ponto de um dia destes ainda fazerem pombal-quartel-general na maltratada EPC, de cujo pátio e de cujos portões, por mais degradados pela incúria e pela amnésia obrigatória dos politicamente imberbes cachopos de momento galarós no poleiro local, sairão voando baixinho.
De chaimite.
E de megafónicas asas abertas à SalgueiroMaia.
Cuidado com elas. Isto é: connosco.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 14 de Maio de 2015

Fotos e edição de Augusto Mota



03/05/2015

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