MEMÓRIA DOUTRO INVERNO
Chamavam-lhe respeitosamente “Senhor Arquitecto”.
Todos os dias fazia de comboio Figueira-Coimbra-Figueira. Vestia-se de preto como uma andorinha anacrónica. A cabeça subia para um chapéu de judeu velho. A gravata parecia uma guita de embrulho de loja de ferragens. A camisa, outrora branca, mostrava o enxovalho têxtil dos homens que vivem sós. Inverno ou Verão, caminhava munido de um guarda-chuva maior do que a tristeza a que chamávamos “mata-cães”. O Senhor Arquitecto era um holograma do passado, Tinha o ar irrefutável de quem aparece do nada para ir a nenhures. Regressava de Coimbra com quatro livros novos. Todos os dias, quatro livros novos. Imperturbável, folheava-os num transe de alheamento que impunha o silêncio em torno dele, como sucede com certas árvores e certas dores.
Cheirava tremendamente a alho. Numa tarde do Inverno de 1988, chovia tanto, mas tanto, que o mundo visto do comboio aparecia mais desalmado do que um fim de amor. A carruagem vinha atulhada de gente. O Senhor Arquitecto sentou-se no único lugar disponível. O bafio a alho tomou imediatamente conta do lugar. Folheava ele os livros novos naquele dia hoje antigo quando uma mulher tirou do saco de compras uma embalagem de desodorizante do ar. Com dedo firme e quase morta de riso, espraiou na atmosfera exígua do compartimento uma nuvem de eucalipto químico. Os passageiros conseguiram sufocar o riso até que o velho homem, percebendo que aquilo do spray era com ele, abandonou sem uma palavra aquele recinto popular. Então, o maralhal desatou à gargalhada. Alguém abriu uma janela até que o alho e o eucalipto se dissolvessem no ar afiado de chuva.
Segui-o. Havia dois lugares noutra carruagem. Ele escolheu o de costas para o destino; homem sábio. Sentei-me de frente para ele. Então, ele olhou-me. Eram olhos de outro século, pérolas de fundo de poço, olhos que vêem para dentro.
Eu disse: “ – Tanta chuva, Senhor Arquitecto.”
Ele disse: “ – Sempre gostei do Inverno.”
Depois calámo-nos. Ele voltou aos livros. Eu pensava que àquela hora estava a chover no mar, tendo-me vindo à mente a frase de Mercê Rodoreda: “Como se o mar não tivesse já água suficiente.”
Nunca mais o vi. Os anos levaram-mo, supunha eu que para sempre. Até que hoje, tendo despertado sem remédio às seis da manhã, amanheci a pensar nele, não exactamente nele, mas no enorme guarda-chuva dele. Que será feito de tal objecto? Que sucede às coisas que substituem a memória dos mortos, que no-las fazem perder?
No meu quarto de ocasião, como que em resposta, uma ligeira fragrância de alho palpitou no escuro, Na rua, senti que começava chovendo. Também sempre gostei do Inverno.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 28 de Maio de 2015
(NB:
Esta crónica é uma republicação, coisa repescada de um livro meu já antigo de
uma década quase. Mas decidi-me por ela in memoriam viva do Dr. Luís
Eugénio Ferreira cumpridor da palavra, e do óbolo, por ele dada e dado ao
Barqueiro. Se o meu Leitor quiser, pode trocar o título da presente crónica
pelo de “Solilóquio IV”. Ele perceberia o recado, que é saudoso já.)
Edição e fotos: Agusto Mota
Foto de cima: Entrada noroeste do Parque dos Poetas, Oeiras
Foto de baixo: Postigo de uma velha porta numa casa abandonada, Óbidos
Foto de cima: Entrada noroeste do Parque dos Poetas, Oeiras
Foto de baixo: Postigo de uma velha porta numa casa abandonada, Óbidos