14/05/2015

Rosário breve




25  MENOS  25  IGUAL  A  28


 


Sentado em perfeita solidão no banco da paragem, espero o autocarro da carreira 27, o das 19h45m. Calor. Inconstante como a vida, o meu Maio natalício esteve de radiador ligado o dia todo. E que me oferece a espera, primeiro, e a viagem, depois? Oferece-me números:

1. A derradeira dança do pombal pelo entardenoitecer. Umas duas dezenas e meia delas voando em formação ordenada, elíptica, comandada por um qualquer instinto gregário e aerotopográfico que não sei azimutar, muito menos explicar. Constituem uma forç’aérea muito bela e muito poderosa no azul-ferrete terminal do firmamento. Um pouco mais alto do que elas, todavia, mas delas ameaçadoramente não muito longe, sobrevoa-as um milhafre. De rapace solidão é a figura dele. Lento, pensativo, calculista, armado até aos dentes que aliás nem tem, merece-me uma alcunha má: Carlucci.

2. Derredor, o arvoredo incólume do planalto (cedros, mormente) matiza uma álea de sombra em refresco. Estão, ainda, vinte & muitos graus centígrados. A esquadrilha columbina desapareceu (para) já. O milhafre, não. Dele, a linha escura tem qualquer coisa de traço cuneiforme, de caligrama chinês, de cabide sumério. Não o odeio nem o venero – vigio-o, tão-só.

3. A quatro minutos do horário, passa-me defronte um quarentão de chapéu amarelo fitado de azul, pele tisnada daquele inequívoco açafrão típico do pica-heroa, rabo-de-cavalo a precisar muito de água-sabão. Vai labiando, como se charutasse um habano, um mata-ratos enrolado à mão que rastilha pelo ar uma espiral pró-hílare de oleaginosa essência de Marraquexe. No preciso entrementes mesmo, cruza a via (mas oh quão majestosamente!) um luzifelídeo, vulgo gato, de pêlo tipo carvão refractário, qual tocha negra de todo alheia e imune a tudo isto a que, se calhar por inconsciente auto-sarcasmo, chamamos “civilização”.
  



4. Tudo isto é pela hora a que os Antigos chamavam “noitinha”, mimoseador diminutivo da tenebrosa incógnita que a Noite é, foi sempre & sempre será. Eu chamo-lhe “entardenoitecer”. Eu chamo-lhe “luzcofuspúsculo”. Espécie de, digo eu, “eterni’tarde”. 0u de “peren’oite”. Acaso, ocaso tudo, qual seja o nome.

5. A bordo já do 27, colecciono os terminais lampejos solares que faíscam nas cúpulas dos prédios de mais altos cristais: frechas de ouro oblíquo, dardos de platina torrada. Mas também se me dá a recepção de certa pré-lunaridade na progressiva quietação: dirigindo-me eu a certa reunião (às 21h00m em ponto) de deserdados & desencaminhados do viver meus afins, recebo os sinais do vulgo humilde – a evidente fadiga dos trabalhadores em fim de jornada, a volatilização em éter dos desempregados cansados de enxamear sem préstimo o mundo-colmeia das abelhas-ainda-assalariadas, o cego de caixa-fenda-esmoler ao peito reenrolando os naperons das cautelas que ficaram por vender à pequena-sorte, o par de namorados partilhando a botelha plástica de água morna mercê de mole câmbio ósculo-beijoqueiro, a autoridade da incerteza pesando os quilogramas do Destino.

6. E ainda se me oferece saber, via «O RIBATEJO» da semana passada, que o “pacu”, peixe parece que familiar da sinistra e dentívora piranha, prolifera no fluvial-tomarense Nabão. E tanto prolifera ele, ouço dizer, que já lhe dá para migrar do rio para a seca Assembleia Municipal de Santarém, pardieiro-capoeiro onde andam urdindo a troca festivo-fogueteira do 25 de Abril pelo 25 de Novembro. O de 1974 pelo de 1975, portanto. O pacu anda armado em milhafre, por modos. Mas é mentira. O pac(arl)u(cci) não é nada o 25/XI/75 que quer festejar. É o 28. De Maio. De 1926. É, é. Repete a desgraça da História quem não engraça com a lição da memória.

Digo-vos eu tão-só isto: cuidado, garnizés, que as pombas ainda um dia se cansam de tanta mansidão. A ponto de um dia destes ainda fazerem pombal-quartel-general na maltratada EPC, de cujo pátio e de cujos portões, por mais degradados pela incúria e pela amnésia obrigatória dos politicamente imberbes cachopos de momento galarós no poleiro local, sairão voando baixinho.
De chaimite.
E de megafónicas asas abertas à SalgueiroMaia.
Cuidado com elas. Isto é: connosco.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 14 de Maio de 2015

Fotos e edição de Augusto Mota



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