25 MENOS 25 IGUAL A 28
Sentado em perfeita solidão no banco da paragem,
espero o autocarro da carreira 27, o das 19h45m. Calor. Inconstante como a
vida, o meu Maio natalício esteve de radiador ligado o dia todo. E que me oferece
a espera, primeiro, e a viagem, depois? Oferece-me números:
1. A
derradeira dança do pombal pelo entardenoitecer. Umas duas dezenas e meia delas
voando em formação ordenada, elíptica, comandada por um qualquer instinto
gregário e aerotopográfico que não sei azimutar, muito menos explicar. Constituem
uma forç’aérea muito bela e muito poderosa no azul-ferrete terminal do
firmamento. Um pouco mais alto do que elas, todavia, mas delas ameaçadoramente
não muito longe, sobrevoa-as um milhafre. De rapace solidão é a figura dele.
Lento, pensativo, calculista, armado até aos dentes que aliás nem tem,
merece-me uma alcunha má: Carlucci.
2. Derredor,
o arvoredo incólume do planalto (cedros, mormente) matiza uma álea de sombra em
refresco. Estão, ainda, vinte & muitos graus centígrados. A esquadrilha
columbina desapareceu (para) já. O milhafre, não. Dele, a linha escura tem
qualquer coisa de traço cuneiforme, de caligrama chinês, de cabide sumério. Não
o odeio nem o venero – vigio-o, tão-só.
3. A
quatro minutos do horário, passa-me defronte um quarentão de chapéu amarelo
fitado de azul, pele tisnada daquele inequívoco açafrão típico do pica-heroa,
rabo-de-cavalo a precisar muito de água-sabão. Vai labiando, como se charutasse
um habano, um mata-ratos enrolado à mão que rastilha pelo ar uma espiral
pró-hílare de oleaginosa essência de Marraquexe. No preciso entrementes mesmo,
cruza a via (mas oh quão majestosamente!) um luzifelídeo, vulgo gato, de pêlo
tipo carvão refractário, qual tocha negra de todo alheia e imune a tudo isto a
que, se calhar por inconsciente auto-sarcasmo, chamamos “civilização”.
4. Tudo
isto é pela hora a que os Antigos chamavam “noitinha”, mimoseador
diminutivo da tenebrosa incógnita que a Noite é, foi sempre & sempre será. Eu
chamo-lhe “entardenoitecer”. Eu chamo-lhe “luzcofuspúsculo”. Espécie
de, digo eu, “eterni’tarde”. 0u de “peren’oite”. Acaso, ocaso
tudo, qual seja o nome.
5. A
bordo já do 27, colecciono os terminais lampejos solares que faíscam nas
cúpulas dos prédios de mais altos cristais: frechas de ouro oblíquo, dardos de
platina torrada. Mas também se me dá a recepção de certa pré-lunaridade na
progressiva quietação: dirigindo-me eu a certa reunião (às 21h00m em ponto) de
deserdados & desencaminhados do viver meus afins, recebo os sinais do vulgo
humilde – a evidente fadiga dos trabalhadores em fim de jornada, a
volatilização em éter dos desempregados cansados de enxamear sem préstimo o
mundo-colmeia das abelhas-ainda-assalariadas, o cego de caixa-fenda-esmoler ao
peito reenrolando os naperons das cautelas que ficaram por vender à
pequena-sorte, o par de namorados partilhando a botelha plástica de água morna
mercê de mole câmbio ósculo-beijoqueiro, a autoridade da incerteza pesando os
quilogramas do Destino.
6. E
ainda se me oferece saber, via «O RIBATEJO» da semana passada, que o
“pacu”, peixe parece que familiar da sinistra e dentívora piranha, prolifera no
fluvial-tomarense Nabão. E tanto prolifera ele, ouço dizer, que já lhe dá para
migrar do rio para a seca Assembleia Municipal de Santarém, pardieiro-capoeiro
onde andam urdindo a troca festivo-fogueteira do 25 de Abril pelo 25 de
Novembro. O de 1974 pelo de 1975, portanto. O pacu anda armado em milhafre, por
modos. Mas é mentira. O pac(arl)u(cci) não é nada o 25/XI/75 que quer festejar.
É o 28. De Maio. De 1926. É, é. Repete a desgraça da História quem não engraça
com a lição da memória.
Digo-vos eu tão-só isto: cuidado, garnizés, que as
pombas ainda um dia se cansam de tanta mansidão. A ponto de um dia destes ainda
fazerem pombal-quartel-general na maltratada EPC, de cujo pátio e de cujos
portões, por mais degradados pela incúria e pela amnésia obrigatória dos
politicamente imberbes cachopos de momento galarós no poleiro local, sairão
voando baixinho.
De chaimite.
E de megafónicas asas abertas à SalgueiroMaia.De chaimite.
Cuidado com elas. Isto é: connosco.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 14 de Maio de 2015
Fotos e edição de Augusto Mota
Sem comentários:
Enviar um comentário