10/09/2015

Rosário breve





TELEFONA-ME  O  ESTÊVÃO




1. Como de costume, Agosto foi-me um mês particularmente difícil: fiquei sem luz dias a fio e noites a novelo.
O televisor cegou-se a si mesmo como um glaucoma inoperável.
As pilhas do transístor oxidaram-se de tal maneira, que o mercúrio da realidade se transformou, ou transtornou, numa virtualidade que roçava o insuportável: a imaginação.
Tudo isto para V. dizer que desconheço se José Sócrates continua ou não preso, se Jorge Jesus treina ainda, ou já não, o meu Glorioso.
Tenho outras palavras para dizer o mesmo: ando estranhamente feliz – como nunca supus fosse possível. E por que motivo nunca o supus? Agora, já sei: porque a ignorância é, por, com e em si mesma, a pedra-de-toque da felicidade.
Para vê-lo, bastou que me faltasse a luz.
2. O truque é Setembro. Sem luz em casa, não me falta a da rua. Falo da luz. Nunca de outra coisa falei, aliás: esta coisa que entra no ser pela única parte do cérebro exposta à inexorabilidade dos elementos – os olhos. Setembro é bonito. Tem seu quê de áureo de moldura, qualquer coisa tipo catedral de manhãs, tontura de andorinhas renitentes, qualquer coisa espectral de acção antifungicida. Maçãs. Nenhuma televisão. Mosto. Nenhuma rádio. Alfazema. Alfa quê? Alfabeto.
Não sei se sírios ou afegãos puderam fechar as fábricas de armamento que estão na origem da essencial desumanização da Humanidade. Não tenho televisão. Não sei. Mas sei. Setembro. Um momento, o telefone toca.
3. Atendo. É comigo. Segue-se a transcrição:
Alô, Daniel?
– Sim, faça favor…
Daqui fala Deus.
Qual dEles?
 Como qual deles? Sou Uno.
– Como o Fiat?
– Qual Fiat?
– O Fiat Lux. A luz, sabe o Senhor? A da minha crónica. A da estupidificação. A do bom Jesus quando era do Braga.
Percebo-te. Acho que fiz filhos a mais.
Tenho-os visto. Alguns são romenos. De dia nos semáforos, à noite nos contentores do lixo. Podes escarrar na parede e limpar as mãos nela.
Só liguei para dizer que te amo.
Obrigado, Stevie Wonder.



 
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 10 de Setembro 2015

Ilustrações e edição de augusto mota


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