23/06/2016

Contra os canhões



ASSUNTO  COM  JANELA





Era um homem que tinha e mantinha um gato. O gato era velho, o homem também. Ambos respiravam, comiam e dormiam numa casa do extremo da aldeia. Pela chaminé descia a voz dos pássaros. O gato, enroscado na cama de jornais, abria um olho e recordava caçadas jovens. O homem tinha umas chinelas de pano onde guardava os pés magros. No fogão a lenha, cozia um pedaço de carne entre feijões e couve. Dividia o caldo e a carne com o gato, fazia café, que o gato não apreciava, ficava-se a ver as brasas com um cachimbo de ébano na boca. No mundo de fora, o vento levava a chuva e as folhas a passear pelas alturas.
Um dia, o homem ficou muito doente. O gato percebeu logo. Enroscou-se-lhe aos pés e esperou. O homem não melhorava. O tempo, sim. Cá fora, o sol fazia filmes com os pinheiros, a brisa embebedava as andorinhas, o cheiro da resina tomava conta da madeira perpétua das horas.
O gato levantou-se, saltou da cama e procurou uma saída. As portas e as janelas estavam fechadas. Todas elas. O gato falou, então. Emitiu aquela frase crescente que sobressalta o coração. Há um tigre em cada gato. O homem não reagiu porque estava todo ocupado a morrer. O gato cheirou a presença autoritária do fim do homem. Eram velhos, tinham tido tempo para compreender que se morre de tanto estar vivo.
Pulou para a cómoda e atirou-se pelo vidro. Na rua, entre cacos, o gato olhou a esquerda e a direita. Tinha de decidir-se por um lado.
Na cama, o homem sentiu o ar que entrava pela janela partida. Louvou intimamente a sabedoria do seu gato. Deixou-se estar, não lamentando nada, esperando apenas que a sua noite interior arranjasse maneira de fechar aquela janela, levando-o para longe de uma primavera que já não era para ele, uma primavera que, exclusivamente, era um assunto de tigres.




Crónica de Daniel Abrunheiro, in quinzenário «Trevim», 23 de Junho de 2016

Edição e fotos de  augusto mota 


1 comentário:

Daniel Abrunheiro disse...

É uma honra vir a estas palacianas varandas, amig'Augusto.