UMA TERTÚLIA AMBULANTE
De livros na mão, o rumo a seguir era:
Póvoa de Atalaia, a terra mãe do escritor Eugénio de Andrade, onde iríamos
visitar a “Casa da Poesia”. Tinha sido o prometido! Mas aguardavam-nos
surpresas, já que há muitos caminhos para se ir de um ponto a outro ponto!...
Já sabíamos que por motivos pessoais o
Fernando, nesse dia, não poderia estar connosco, tendo feito substituir-se pelo
seu amigo Pedro Silveira, que em poucos minutos estabeleceu empatia com todo o
grupo. Assim, discretamente, dei indicações sobre o itinerário ao nosso
motorista, e com a animação que já vinha de ontem (pese embora a derrota
futebolística de Portugal no campeonato do mundo…), entrámos para o autocarro.
Bastou sair do Fundão, para sul, pela antiga estrada nacional, para sermos
brindados com a vista de pomares e pomares de cerejeiras, cujos ramos quase nos
tocavam na janela. Apetecia esticar a mão e apanhar as cerejas.
O grupo continuava deliciado a olhar as cerejeiras
carregadinhas de frutos e em pouco tempo, entrámos na aldeia de Donas, onde o
autocarro parou no largo principal. Então revelámos a primeira surpresa: - Não,
ainda não estávamos na terra do Eugénio de Andrade! - Iríamos visitar a “A Casa
das Memórias” de António Guterres, espaço museológico onde se encontram
expostas as ofertas que Guterres recebeu enquanto era primeiro-ministro, e que,
apesar de já estar aberta ao público, aguarda a disponibilidade de António
Guterres para a inauguração oficial.
“A Casa das Memórias” fica na zona
antiga da aldeia, num pequeno largo onde estão a igreja e a Casa do Paço. Em
frente, fica a casa dos avós de António Guterres, onde na infância este passava
as férias. Todos ficaram agradavelmente surpreendidos e Pedro Silveira teve a
gentileza de nos abrir o museu, proporcionando-nos, ele próprio, a visita
guiada ao espaço. Visitámos também a Igreja Matriz (Igreja de Santa Ana), um
edifício de granito, em estilo manuelino, com cerca de 500 anos.
Direção Donas – Fundão - Segunda
surpresa: paragem no mercado das cerejas! Caixas e caixas da cereja que recheia
os chocolates da Nestlé. Acabadas de colher, grossas, vermelhas, carnudas, e
doces! Uma tentação irrecusável à nossa espera…
Com a mala do autocarro cheia de
caixinhas de cerejas, lá continuámos, agora supostamente, em direção à Póvoa de Atalaia. Quando estávamos quase a chegar ao cruzamento, eis que o Sr. Elias
virou à direita e vimo-nos a subir em direção à aldeia histórica de Castelo
Novo. Esta era a terceira surpresa: visita guiada à aldeia.
Já completamente imbuído do espírito
tertuliano do grupo, Pedro Silveira ia-se mostrando um verdadeiro cicerone e foi-nos
dando conta de curiosidades próprias da belíssima aldeia de granito, que fica
na encosta oriental da serra da Gardunha, a cerca de 650 metros de altitude e
que em tempos remotos se chamou Alpreada.
As provas que documentam a existência da
povoação Alpreada apontam para os primeiros tempos da nacionalidade. O topónimo
Castelo Novo só aparecerá mais tarde. Vários autores defendem que o primeiro
foral tenha sido passado à povoação de Alpreada em 1202 por D.Pedro Guterres e
D. Ausenda, alegadamente seu donatário. Este terá sido o primeiro alcaide do castelo e talvez o seu construtor.
O topónimo Castelo Novo é citado pela
primeira vez em 1208,
no testamento de D. Pedro Guterres, o qual doa Castelo Novo aos Templários. A mudança de nome atribui-se
ao facto de ali, ou ali perto, ter existido um castelo velho que,
entre 1205 e
1208 terá dado lugar à construção de um castelo novo, derivando daí o atual
nome da aldeia. Não é consensual que a construção do novo castelo seja
atribuída a D. Dinis, mas é certo que o segundo foral de Castelo Novo lhe foi
atribuído por este rei.
No reinado de D. Manuel foram feitas
obras de recuperação do castelo, e foi D. Manuel que concedeu a Castelo Novo o
seu terceiro foral. O concelho foi extinto em 1855 e desse tempo ainda
se conserva o símbolo principal do concelho: o pelourinho.
Descemos a pé desde as águas do Alardo
até ao centro da aldeia. O castelo continua a dominar a paisagem. Seguimos até
ao Largo do Município onde se localizam os antigos Paços do Concelho (edifício
quinhentista) e o pelourinho de estilo manuelino, datado do século XVI. Passámos
pelo antigo lagar de vinho - lagariça - dos séculos VII e VIII. Construído
diretamente numa grande rocha, perto do Castelo, o lagar é composto por duas
pias, uma maior onde as uvas eram pisadas e outra menor onde era recolhido o mosto.
Este lagar foi construído durante a ocupação romana e é um testemunho que
atesta as primeiras práticas da cultura do vinho na região.
Atualmente Castelo Novo conserva ainda
restos de calçada romana e destaca-se pelo seu traçado concêntrico, onde as
ruas foram traçadas segundo as curvas de nível. A arquitetura da aldeia
apresenta casas populares em pedra com pequenas varandas de madeira e antigos solares
apalaçados.
Relembrando os tempos do domínio
concelhio, descansámos um pouco sentados no pelourinho. Ali nos refrescámos com
a água fria e pura da fonte que entoava no tanque a melodia daquela natureza de
pedras rudes e belas. Alguns habitantes iam passando olhavam curiosos a arte
teatral da Mercília, que nos deliciava com a leitura de textos de Fernando
Paulouro Neves, e seguiam na calma serena dos seus dias.
Estava a chegar a hora de almoço e o
tempo escasseava, por isso descemos até ao belíssimo Chafariz da Bica, monumento barroco que data do século XIV e exibe a pedra de armas de D. João V.
O Chafariz da Bica é constituído por uma escadaria de acesso e um logradouro rodeado
de bancos de pedra granítica.
Ali nos esperava o autocarro. Seguimos pela
estrada principal passando junto à agradável praia fluvial da Ribeira de
Alpreada.
Mais
abaixo, chegámos a um restaurante situado nos arrabaldes da aldeia, onde a
nossa tertúlia continuou, mais uma vez, à volta da boa cozinha regional: cabrito
assado no forno; cozido à portuguesa e ricos acompanhamentos. Soberbo.
O almoço foi animado, a conversa era uma
constante e boa disposição também; a expetativa em relação ao resto da tarde
continuava elevada. Pedro Silveira, de tão aculturado ao grupo, já quase parecia
leiriense.
O motorista, Sr. Elias, sempre com uma
atenção e correção extremas, conduziu-nos, finalmente, à Póvoa de Atalaia.
Estacionou o autocarro no início da aldeia. Mesmo em frente, estava o edifício
da antiga escola primária, onde foi instalada a “Casa da Poesia” que é um espaço
interpretativo da vida e obra do poeta Eugénio de Andrade.
Ali mesmo, na rua, com os cheiros da
terra, com nuvens escuras a querer ocultar por momentos o sol e pingos
espaçados a cair-nos na cabeça, evocámos o poeta com a leitura de alguns dos poemas
do livro Fernando Paulouro Neves - “A Materna Casa da Poesia”- sobre Eugénio de
Andrade.
Alimentava-nos a alma o ar daquela
aldeia onde ele foi menino. Fomos seguindo rua abaixo até ao adro da Igreja de
Santo Estevão, onde encontrámos algumas “mulheres de negro” que sentadas nos
bancos vigiavam a rua, a porta de casa e uns raios de sol.
Mais uma vez o Pedro nos guiou e abriu
todas as portas…Visitámos a igreja e continuámos pela Rua Poeta Eugénio de
Andrade até nos cruzarmos, logo à direita, com a Rua da Eira e ali estava a
casinha com uma placa indicativa que diz: “Aqui viveu Eugénio de Andrade quando
menino”.
A Casa da Eira deixou de ser “a casa térrea que prolongava a eira e o
olival”: continua pequenina, mas modernizou-se; o caminho de barro e lama
passou a ser uma estrada de paralelos de granito; no balcão da casa, a mãe já
não canta; não se ouve o realejo e o menino desta terra, desta casa, morreu.
Ficou poeta.
Como poderemos comemorar os poetas, resgatá-los
da morte, senão lê-los? Por isso, sob um céu plúmbeo, encostada no umbral da Casa
da Eira vimos e ouvimos a emoção da Mercília transfigurar-se na angústia do menino
que foi poeta:
“Certa
manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. - Ó mãe, mãe… - Mas a mãe não
vinha. Não havia mãe. Havia só a porta fechada. - Ó mãe, mãe… - E a casa
deserta. Pelas frinchas largas da porta via a amanhã lá fora. Era uma manhã de
sol quente, talvez de Julho, talvez de Agosto. Devia haver medas de palha na
eira em frente. Mas os meus olhos mal viam, estava rasos de água e de angústia.
- Ó mãe, mãe… - E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas
pequeninas, estrelas verdes vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caiam-me
pela cara. - Ó mãe, mãe… - O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito
abertos, vendo atrás das frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras. -
Ó mãe, mãe… -
E
ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, pois a
essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece
estes versos.”
Como se o mundo acabasse com o final da
leitura, em segundos, uma nuvem negra desabou-nos em cima violentamente. Encostámo-nos
na umbreira da porta, com a chuva a fustigar-nos o corpo. Estendemos as mãos
num abraço coletivo e houve lágrimas de poesia numa tarde de Julho.
Só quem ali esteve saberá o que vivemos.
…
Voltámos a percorrer as ruas da Póvoa de
Atalaia, agora no sentido inverso, de corpo molhado, mas com a alma cheia. O
Pedro deu-nos a conhecer a “Casa da Poesia”, onde pudemos observar o percurso
biográfico e a obra literária de Eugénio de Andrade com recurso a textos,
imagens e vários objetos.
Concluímos assim, fora de portas, o
nosso 26º “Café com Livros”. Espalhámos um pouco de Leiria e trouxemos um pouco
da Beira.
Obrigada ao Fernando Paulouro Neves e
Pedro Silveira pela deferência fraterna que nos dispensaram. Somos gratos.
No início desta aventura animava-nos
a promessa feita em forma de convite:
“- Seremos personagens deambulantes
no mundo hilariante e desafiador de “Fellini na Praça Velha” e seremos
espantados aprendizes da magia telúrica de Eugénio de Andrade.”
Quem
foi, saberá que fomos tudo isto e muito mais…
Os sorrisos da chegada trouxeram emoções dentro
de si e falam mais do que mil palavras!
Texto de Rosa Neves
Edição de Augusto Mota
Fotos de Augusto Mota, Florbela Ferreira, Lídia Raquel, Mariana Neves, Rosa Neves