15/08/2006

O

Chove em X. É a noite lá fora. Dentro de uma das salas do edifício prisional estão dois homens parados. Um está de pé. O outro sentado. O de pé fuma; um pálido fumo ergue-se acima do nariz e dos olhos, rarefazendo-se antes de tocar o tecto. O homem sentado, pousa as mãos e os grilhões em cima do tampo da mesa.
-Como conseguiste mesmo assim?
-O quê?
-Comer nesta hora?
-Tinha fome.
-Tinhas fome como?
-A fome é uma das primeiras consequências da existência.
-Isso não é verdade.
-Não é?
-Não... Não acredito nesta tua fome... A maioria vomita. O medo, os nervos, a ansiedade... Até eu que não estou aí... Nem consigo engolir. Não passa nada por aqui - aponta para a garganta.
-Aquilo estava bom. Há muitos dias que não comia assim.
-Isso não é verdade.
-Então qual é a verdade?
-És escritor. Não acredito que não saibas.
-Já não escrevo.
-Mas escreveste.
-Sou só mais um par de horas.
-Os livros vão mais longe que isso.
-Depende.
-Depende de quê?
-Depende se são mais um livro. Ou se são um livro. E tu?
-Eu?
-Quando pensas em publicar?
-Nunca.
-Porquê?
-Não tenho talento. Não é bom. Ninguém se interessará.
-Como é que tens tanta certeza?
-Sei-o simplesmente.
-Isso não é razão.
-Pode não ser para ti, mas para mim é suficiente. Sei-o, além de tudo, porque também te li. E sei que nunca vou ser capaz.
[continua ]

Sandro William Junqueira, inédito.

2 comentários:

Anónimo disse...

E espero ansiosa a continuação porque tudo o que vem do Sandro ( inclusive ele próprio... )é muito belo.

Um beijo!

António Simões ,Augusto Mota e Gabriela Rocha Martins disse...

mas espera sentada, Rita, porque gostamos de manter o suspense.

entretanto, um beijo