30/11/2006

13. Amigos, cantai



Quando eu for livre,
do corpo liberto,
dirão: "onde vive
ele agora ao certo?"
Vivo no anil,
do ar me alimento -
meu corpo subtil
mais leve que o vento.
Vivo onde a asa
não se aventura:
a alma tão alta
deceu à fundura.
E agora voa
no céu de si mesma,
e atravessa a sombra
para a luz que a cega.
Essa luz cegante
vai-me por à prova:
pra seguir adiante
só com vista nova




"Quando eu me for...",
não é bem assim:
morte é o amor
que volta para mim.

Deste corpo farto,
vou nascer de novo -
dá-se novo parto,
tenho outro corpo,
que é feito da luz
que na carne ardia,
e a carne reduz
à cinza mais fria.
Mas enquanto habito
o corpo de agora,
o prazer infinito
da dor me devora -
Nela canto e ardo,
dela me alimento,
e sei que não tardo:
chegará o tempo
de voltar ao Pai -
viva-se entretanto!
Amigos, cantai
dentro do meu canto.

António Simões ,inédito , in "Poemas Antigos".
Fotopoema 76- poema de António Simões. Fotografia e composição de Augusto Mota.
Fotopoema 78 - poema de Fernanda sal Monteiro. Fotografia e composição de Augusto Mota.

26/11/2006

até sempre ,Mário!



Mário Cesariny , o poeta / pintor ,do surrealismo português ,faleceu ,esta manhã ,em Lisboa




até sempre ,Mário!



Todos por Um

A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de recorrer à vala comum.

Mário Cesariny , in ,"Homenagem a Mário Cesariny" ,triplov, 2005.



25/11/2006


Fotopoema 75. Augusto Mota

o sortilégio dos frutos

Suculentos frutos frescos abrem-se à boca como romãs ao sol poente e o sumo carmim de suas veias derrama-se como música em nossas mãos. O bardo entoa o sortilégio de um céu longínquo de azul e fantasia. Muito para além das janelas desses frutos revejo os tempos em que juntos bebemos suas sementes, quando a maresia e o vento leste nos pinhais parecia prolongar a doçura de cada gesto e tais frutos abertos à natureza diziam de nós e de todas as colheitas que sagravam os bosques do nosso contentamento.
Em seu constante revolver o mar acolhe este balançar entre a memória e o vento, enquanto o bardo insiste nos tons outonais do poente que separa a vida e a gente.
Lestos são os frutos em seu despontar de prazer. Serão novo andamento em secreto concerto, melodia vaga e triste que ensombra os dedos e chora por nós um adeus que festeja o álacre Outono em sua primaveril renovação.
As estações do corpo também cumprirão seus ritos!
Augusto Mota ,inédito ,in "A Geografia do Prazer", 2000.

23/11/2006

...


...
M. Gomes da Torre ,atrasado ,fechou o ciclo

Luz Sobre o Aberto*

Homenagem a António Ramos Rosa


Não há árvore, fruto ou abismo que o teu coração não conheça,
mas improvável é sempre a chama da tua respiração,
na luz sobre o aberto,
onde o caminho para o infinito é o ardor que toda a palavra sustém.
Em ti brilham as sílabas, as imagens, as entranhas das páginas.
Nenhum grito te rasga porque és a própria luz sobre o abismo
inominado das origens.
Nenhum grito te abre, nenhum gume te fere, porque és
a própria abertura.
Nas tuas árvores, na tua pele, brilham as dunas, o deserto,
as entranhas do mundo.
Nas tuas veias, brilham oásis sempre férteis.
Nenhum grito te raga, porque és o grito intraduzível
de uma respiração poderosa.
No teu sangue, derramam-se cascatas brancas, cascatas fulvas,
onde corre um rio exaltado de preciosas salinas.
Os teus ouvidos são membranas vibráteis,
abertas sobre as constelações da noite.
Em ti, todas as chamas são lagoas de linfa ,sulcos, estrias,
meandros do indizível.
Os teus próprios muros são silêncios, fruto, jóia,
apontamento íntimo.
As tuas clareiras são rasgadas por sulcos.
De bálsamo e frescura é o teu rosto.
Quando falas das feridas, escuto as guitarras, as árvores,
os insectos, as paredes brancas, as aves mais puras.
Nenhum grito te rasga, porque és a própria nudez despojada.
No turbilhão dos labirintos, voltas-te sempre para o sítio,
onde as janelas se abrem e se incendeiam,
nos fluxos de lava, onde os aprendizes se acolhem.
Quando indagas o mundo e os seus enigmas, indagas o silêncio,
a bruma, nos arcos transparentes habitados pelo Ser.
És sempre a espiral de uma vertigem que se encontra,
em seu clamor de veludo, em suas águas de silêncio,
onde desejo e alvor se fundem, na madrugada do teu corpo,
onde o universo é uma metonímia de figuras azuis.
*Maria do Sameiro Barroso, in "Homenagem a António Ramos Rosa", Revista Textos e Pretextos, nº 9 Outono/Inverno, 2006, Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.

20/11/2006

desafio a seis mãos


Carlos Alberto Silva escreve


António Simões não lhe fica atrás


Gabriela Rocha Martins segue o desafio



e a Fernanda Sal Monteiro finaliza.o

( asseguro.vos que tentei introduzir os fotopoemas pela sua ordem natural ,só que o blogger publicou.os como muito bem entendeu .desculpem a arbitrariedade do post ... nem sempre os autores decidem ... )

e, ... sabem quem foi o autor do desafio e da fotografia?

claro ,só podia! Augusto Mota ,o jardineiro/filósofo.

19/11/2006

antigas cumplicidades

Vou partir na asa de uma palavra,
de uma qualquer,
não escrita ainda,
que venha voando por minha alma fora,
à procura deste poema


Antes que sobre ele inicie sua descida,
a ela, que vem ainda cheia de energia da viagem,
vou desviá-la, para que me leve
para o outro lado da folha -
e, levando-me em seus braços,
desça, sem rumor,
sobre a nudez da nova página,
e me deixe ficar para sempre
no poema que nunca escreverei

António Simões escreveu
Augusto Mota fotografou e compôs

16/11/2006

A taça das tuas mãos

Traz-me numa taça
a água fresca do dia,
quando o vento se liquefaz
sob o meu olhar atento
e o meu corpo é menos carne do que vento,
porque minha alma lá dentro não cabia,
excessiva, enorme -
Vá, toca-me ao de leve com tuas mãos,
para que a tarde sobre mim se entorne.
António Simões, inédito, in "Poemas Antigos".

11/11/2006

bom fim de semana

acho que sábado é
a rosa da semana
-Clarice Lispector.

08/11/2006

Mário Viegas diz Caeiro / Pessoa




Da mais alta janela da minha casa
com um lenço branco digo adeus
aos meus versos que partem para a humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
porque não posso fazer o contrário
como a flor não pode esconder a cor,
nem o rio esconder que corre,
nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
e eu sem querer sinto pena
como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.





leia e oiça aqui
ou aqui!

07/11/2006

goodbye


J.Blunt : Goodbye my lover

( clicar sobre a imagem para reproduzir )

06/11/2006

a 6 de Novembro ...

de 1919 ,nasceu no Porto

Sophia de Mello Breyner Andersen



em 2005

Augusto Mota compôs

Gabriela Rocha Martins escreveu

o teu passado -distância

o meu presente -futuro

o jardim

o sol

o muro

o mar

hoje regressas

Olympia

ao teu lugar

( homenagem a Sophia de Mello Breyner Andersen ,Julho de 2004 )

01/11/2006


Fotopoema. Augusto Mota

A Mão Semeada

É quase o corpo, movido pelos arados, cercado de agulhas
moribundas.
E a vida canta, inóspita, à beira de outras nuvens.
Pelas aras de cinza, nada me resta senão o voo invisível,
pelas margens da agonia,
e a noite incessante que me traz a terra, a espessura do sangue,
os caminhos frescos.
Agora sou o limite que emerge, o pulso, o grito,
o som que principia.
E chego, porque há novas harpas que se enredam nos dias.
Alguém me fala.
Sobre negros precipícios, há espelhos negros
e a vida mal definida que preenche as casas.
Algures os limoeiros florescem e reanimam a face lívida,
olvidada pela música.
Pelos tinteiros de luz, pinto estrelas de sombra.
As cinzas dormem e há novas raízes que se libertam,
pela mão semeada, adormecida.
É, pelo corpo, cercado de espelhos, que vivo e atravesso
o olhar, a assonância crescente, a semente do diálogo.
Alguém escutará o novo fulgor, o embate cego
contra os muros, a complexa ogiva.
Como uma lâmpada, caminhará a palavra,
pedra cintilante, nome e destino, vagido enigmático,
luzeiro obscuro, esporo de veludo,
coroado pelo vento.
Maria do Sameiro Barroso, in "Palavras de vento e de pedra", org. Pedro Salvado, Município do Fundão, 2006.