05/09/2007

miosótis



Como um anjo persa descemos do trono para semear, como penitência, miosótis ( Myosotis scorpioides ) pelos campos alagados dos territórios da ausência e do sonho. Assim não vamos esquecer o trajecto dos olhos a caminho de umas mãos agora vazias dos frutos da véspera. Vamos, pois, esperar pela estação própria, quando na terra húmida germinar uma delicada renda vegetal para, então, bordar uma coroa de singelas flores azuis nas mãos frescas da madrugada e, com elas assim enfeitadas, subir a grande escadaria que antecede o arco-íris de todas as sensações. De lá de cima espalharemos aos quatro ventos sementes de bonina ( Bellis perennis ) que também hão-de germinar em abundância por montes e vales, assim perpetuando a memória dos dias claros.
E pelos bosques do arco-íris descansaremos os sentidos ao longo de veredas orladas de pervinca ( Vinca minor ), enquanto aguardamos o desabrochar do azul-violáceo de suas flores. Com elas faremos um filtro raro que acautele a distância do tempo e traga de volta o feitiço das noites quentes, quando as vozes chegam de muito longe, de tão longe que apenas adivinhamos o verdadeiro rosto das palavras, embora o saibamos coroado de miosótis e de boninas.
E pelos lagos que animam a frescura destes bosques havemos de procurar o nenúfar ( Nymphaea alba ) e o golfão-amarelo ( Nuphar luteum ) para com os seus pedúnculos e flores, pacientemente, fazer os colares honoríficos que irão distinguir os bons serviços prestados por nós mesmos, em nosso proveito próprio.
Assim frutifiquem todas as sementes que lançámos aos ventos do sonho!
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Fotografias e Composição de Augusto Mota.

Sem comentários: