06/12/2011

A véspera do corpo


É tão forte a sensação de desfilada sobre o jardim acolchoado de malvas e rosas bravas que, como corcéis de crinas ao vento frio do norte, nos perdemos pelos ínvios caminhos do prazer entre as mãos e as colinas sonhadas, por onde suavemente sobe um rio que regressa à nascente. Que reencontro difícil este entre a memória e a vertigem dos dias que já passaram! A nova cidade impõe-se em cada gesto que acompanha a sagração de tal rio, como se todas as religiões do mundo nos encaminhassem para o vértice do universo.

Atávica inibição esta de regressar ao passado, com mãos apartando colinas e desejos, ultrapassando, sobretudo, as recordações que se imiscuem entre os dedos e subjugam o corpo todo! Desejar é, assim, uma outra maneira de sofrer ou de querer adiar o desencontro. Só as mãos, portanto, saboreiam os segundos de cada fruto, como se o relógio de tempo estivesse na hora legal!

Preferível será estar sentado na cadeira do tempo e esperar que o rio volte a descer por nossos braços e desagúe num mar renovado de emoções:

os corcéis do tempo agigantam a hora que passa e se dissolve como música em nossas artérias. vemos o infinito na palma da mão e agradecemos ao poeta tal augúrio de inocência. por isso um céu brilha em cada flor selvagem que acoberta os corpos da nossa razão. um estertor inunda todos os gestos e parece anunciar o fim da desfilada . o vento norte mudou de rumo e, agora, uma lufada morna aquece as frontes e abre, deliciada, as portas de uma outra percepção. a paisagem muda de ritmo. o outono anuncia-se no escarlate das folhas que se despedem das árvores e de nós. o silêncio é partitura nova partilhada com emoção. o diálogo renova a despedida das folhas que já atapetam os nossos olhos. novo húmus fecundará a próxima estação dos corpos e amanhã recordaremos as mãos, as flores, os frutos e novamente as mãos, as flores, os frutos e as alegrias do tempo que vive e morre em nós e na correria louca dos corcéis no amanhecer selvagem de uns olhos aguados a caminho do mar e da liberdade.

Os jardins são feitos de espera e de emoções. Os dias são as estações que regamos com nossos anseios. Os frutos, esses, serão colhidos na véspera de tudo.

Augusto Mota, in «A Geografia do Prazer», 2000  (não editado)

1 comentário:

fernanda sal m. disse...

Um belo texto . Forte !
É bom, é necessário que esses inéditos comecem a ver a luz do dia presente ! É a hora.