Tresloucada doença prolongada
Os jornais de antigamente
chamavam “tresloucado acto” ao
suicídio. Quando no activo da profissão, nunca fui muito amigo de noticiar
suicídios. Talvez a minha repugnância pelo tema derivasse do respeito (e do
temor) por essa máxima privacidade que é a terminação auto-infligida.
Segunda-feira passada, os
jornais parangonavam mais uma tragédia portuguesa desse teor. Um canalizador
desempregado de 42 anos atirou-se para um poço aberto. A diferença está em que
arrastou com ele o filho, menino de tão-só dois anos de idade. Foi numa aldeia
de Viana do Castelo.
Parece moda moderna, esta de
precipitar os próprios filhos no reverso do futuro. Acto e facto pungem e
consternam em acerbidade aspérrima a todo quem não estiver embrutecido de vez.
E fazem pensar toda a pessoa a quem não apenas o pente concorra à cabeça.
Não me resulta difícil,
franca e infelizmente, ver naquele poço sem cobertura o pélago da selvajaria
hipercapitalista do nosso tempo. A voracidade do Deus-Dinheiro revela-se cada
vez mais mortífera. A vida pessoal, esse tesouro portátil que só se gasta uma
vez, deixou de pesar na balança de um prato só dos mandadores. Daí que eu
considere, o mais sinceramente, o mais acusadoramente, que quem matou aquele
pai e aquele filho tenha sido o Governo da Nação.
É peregrina, esta minha
ideia?
É tola, esta minha raiva?
É desajustada, tal minha
arrelia?
Seja. Seja. Seja.
Mas.
Mas algo tem de ser feito
para que o desassossego contagie, também, os criminosos da Alta-Finança. Para
que a intranquilidade se aposse, também, dos corruptores da Banca. Para que o
medo erice, também, o espinhaço dos bastardos adoradores do ouro.
Aquela aldeia de Viana do
Castelo é Portugal todo: sinédoque tão triste quão real. O café em que fiavam a
bica àquele canalizador sem esperança é o café a que todos vamos. E aquele poço
a céu-aberto é deveras o que vos disse que é.
Os jornais de antigamente
chamavam “doença prolongada” ao
cancro. Eu não. Eu chamo “doença
prolongada” à matilha governamental. E doença tão prolongada, que me não
parece seja curável enquanto o solo pátrio não estiver juncado de pequeninos
cadáveres de crianças que cometeram, sem no saber, o “tresloucado acto” de nascer em Viana do Castelo, isto é, em
Portugal.
Crónica nº 300 de Daniel Abrunheiro, in "O Ribatejo", de 14.03.2013