Na
Rua onde a consciência da minha vida se deu em pertença ao mundo, existiam o
senhor Elói e a senhora Celeste.
Ele
era sapateiro em casa.
Ela
dava injecções por fora.
O
vinho dele era manso. Nunca fazia as cenas tristes dos bebedores sem conserto.
Ela
era ladina e legítima. Parecia uma rosa frágil, mas era forte e rosa na mesma.
Geraram
entre si vários rapazes: correctos todos, educados todos, todos e cada um
homens já desde meninos.
A
senhora Celeste foi dos dois a primeira a morrer.
(Na
morte, é-se sempre o primeiro, alguém disse. No nascer, sempre o último,
antetizo eu.)
Talvez
por achar que o mundo e os sapatos que há no mundo deixaram, como o vinho de
tantos outros homens, de ter conserto, foi em desconcerto que o novo viúvo se
achou.
Deixou
apodrecer a barraquita onde tantos anos remendara, cosera e assolara os
calcantes pobres dos pobres seus vizinhos. Passou a beber (de) mais. O vinho da
viuvez amargava-lhe a opinião.
No
exílio do desamparo, sem filhos em casa, mal comia um bago de arroz. Julgo que
o senhor Elói vivia de ovos cozidos e de figos esmagados em farinha para bebés.
Gostava de nozes, mas também os dentes o tinham desertado. Como o vinho não tem
ossos e não há por isso que roê-los, sustentava-se de uva-mijona ao
preço-da-chuva em copo-de-três.
Nunca
mais lhe bateram à porta – nem para colar um tacão, nem para pedir à mulher uma
inoculação de soro milagreiro contra a humidade dos ossos, a secura do coração
ou o ramerrão de tanto ontem à janela do amanhã.
Ele
habituou-se ao lusco-fusco do vinagre de continuar vivo.
O
rosto dele adquiriu aquela esponjura roxoviolácea cuja purpurina não engana
ninguém.
Ele
era porém, como até ao fim haveria de ser e foi, igual ao que fumava: um
português suave definitivamente provisório riscado pela pederneira do silêncio
no escuro da caixa-de-fósforos do quarto antigamente conjugal.
Gracejavam
com ele a propósito das vacas-magras que o seu Sporting há demasiadas épocas
apascentava. Ele sorria, contente de o terem presente. Mas de verdade não
tinham – era só um viúvo só, um remendão que bebia e já nem remendava nem se
emendava, um que lavava e cosia as próprias meias. Se ele fosse de destempero
vindicativo, vingar-se-ia com o uso e no porte dos sapatos mais bem recauchutados
da Rua e arredores. A graxa que ele caminhava, impecável e lustralmente acamada
no couro velho das botinas antigas, era de outra coruscância.
As
grandes e vitalícias chuvas de Março reiteravam o novembro-perpétuo da casa do
sapateiro, nela percutindo a vidro a melopeia do
não-mora-aí-ninguém-aí-não-mora-ninguém.
Era
uma casita de fileira operária, ao alto do charco que dragaram para construção
da mercearia do Licínio.
O
sol claro do claro Junho, a lua próspera do sardinheiro Agosto e a nostalgia
sideral da irredenção de Janeiro eram os recipientes naturais deste homem
confirmado e conformado em solidão, daquela solidão mais sozinha que range
móveis até nas saletas vazias.
Nunca
o vi com um livro – talvez porque o instinto o fizesse saber que faria parte de
um, este.
Sei
que nunca permitiu que se oxidasse o estojo metálico em que a senhora Celeste
descansava a seringa esterilizada. O que nele se oxidou foi outra coisa: talvez
a consciência, talvez a vida, talvez a pertença, talvez o mundo.
Ou
tudo junto nas apenas três letras de Rua.
Essa
mesma a que tornarei também um dia.
E
não há-de ser para viver, porque nem este verbo se difere nem se repete – e
porque em e de alguma coisa hei-de, finalmente, ser o primeiro.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 12 de Junho de 2014
foto e edição: Augusto Mota