12/06/2014

Rosário breve




UMA VEZ  SÓ






Na Rua onde a consciência da minha vida se deu em pertença ao mundo, existiam o senhor Elói e a senhora Celeste.
Ele era sapateiro em casa.
Ela dava injecções por fora.
O vinho dele era manso. Nunca fazia as cenas tristes dos bebedores sem conserto.
Ela era ladina e legítima. Parecia uma rosa frágil, mas era forte e rosa na mesma.
Geraram entre si vários rapazes: correctos todos, educados todos, todos e cada um homens já desde meninos.
A senhora Celeste foi dos dois a primeira a morrer.
(Na morte, é-se sempre o primeiro, alguém disse. No nascer, sempre o último, antetizo eu.)
Talvez por achar que o mundo e os sapatos que há no mundo deixaram, como o vinho de tantos outros homens, de ter conserto, foi em desconcerto que o novo viúvo se achou.
Deixou apodrecer a barraquita onde tantos anos remendara, cosera e assolara os calcantes pobres dos pobres seus vizinhos. Passou a beber (de) mais. O vinho da viuvez amargava-lhe a opinião.
No exílio do desamparo, sem filhos em casa, mal comia um bago de arroz. Julgo que o senhor Elói vivia de ovos cozidos e de figos esmagados em farinha para bebés. Gostava de nozes, mas também os dentes o tinham desertado. Como o vinho não tem ossos e não há por isso que roê-los, sustentava-se de uva-mijona ao preço-da-chuva em copo-de-três.
Nunca mais lhe bateram à porta – nem para colar um tacão, nem para pedir à mulher uma inoculação de soro milagreiro contra a humidade dos ossos, a secura do coração ou o ramerrão de tanto ontem à janela do amanhã.
Ele habituou-se ao lusco-fusco do vinagre de continuar vivo.
O rosto dele adquiriu aquela esponjura roxoviolácea cuja purpurina não engana ninguém.
Ele era porém, como até ao fim haveria de ser e foi, igual ao que fumava: um português suave definitivamente provisório riscado pela pederneira do silêncio no escuro da caixa-de-fósforos do quarto antigamente conjugal.
Gracejavam com ele a propósito das vacas-magras que o seu Sporting há demasiadas épocas apascentava. Ele sorria, contente de o terem presente. Mas de verdade não tinham – era só um viúvo só, um remendão que bebia e já nem remendava nem se emendava, um que lavava e cosia as próprias meias. Se ele fosse de destempero vindicativo, vingar-se-ia com o uso e no porte dos sapatos mais bem recauchutados da Rua e arredores. A graxa que ele caminhava, impecável e lustralmente acamada no couro velho das botinas antigas, era de outra coruscância.
As grandes e vitalícias chuvas de Março reiteravam o novembro-perpétuo da casa do sapateiro, nela percutindo a vidro a melopeia do não-mora-aí-ninguém-aí-não-mora-ninguém.
Era uma casita de fileira operária, ao alto do charco que dragaram para construção da mercearia do Licínio.
O sol claro do claro Junho, a lua próspera do sardinheiro Agosto e a nostalgia sideral da irredenção de Janeiro eram os recipientes naturais deste homem confirmado e conformado em solidão, daquela solidão mais sozinha que range móveis até nas saletas vazias.
Nunca o vi com um livro – talvez porque o instinto o fizesse saber que faria parte de um, este.
Sei que nunca permitiu que se oxidasse o estojo metálico em que a senhora Celeste descansava a seringa esterilizada. O que nele se oxidou foi outra coisa: talvez a consciência, talvez a vida, talvez a pertença, talvez o mundo.
Ou tudo junto nas apenas três letras de Rua.
Essa mesma a que tornarei também um dia.
E não há-de ser para viver, porque nem este verbo se difere nem se repete – e porque em e de alguma coisa hei-de, finalmente, ser o primeiro.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 12 de Junho de 2014






foto e edição: Augusto Mota 

3 comentários:

Júlia Ribeiro disse...

Um grande texto ! Parabéns.

Júlia Ribeiro

Daniel Abrunheiro disse...

Grato pela publicação, grato pelas leituras.

Olivia disse...

Obrigada por nos deixar aqui a oportunidade de ler este texto maravilhoso! Parabéns pela sua excelência!