26/06/2015

Café com livros




POR TERRAS DE VERA CRUZ




Na tarde do passado Sábado, dia 20 de Junho, teve lugar na sala do Piso menos 1 do m|i|mo – museu da imagem em movimento, mais uma tertúlia “Café com livros”, a já tradicional iniciativa do grupo Trêstúlias com(vida).

 

As Trêstúlias: Rosa Neves, Cristina Barbosa e Lídia Raquel 

Desta vez o convidado foi o escritor João Morgado que nos veio falar do seu último livro, «VERA CRUZ», edição do 'Clube do Autor', 2015, para com ele vivermos os trabalhos e os perigos da emocionante viagem de Pedro Álvares Cabral a caminho das Índias, e regresso, passando pelo “achamento” do Brasil. Lídia Raquel fez a apresentação do autor:  
João Morgado nasceu em 1965, na aldeia do Carvalho, Covilhã. Formado em Comunicação pela Universidade da Beira Interior, tirou o mestrado em Estudos Europeus na Universidade Pontifícia de Salamanca, Espanha. Trabalhou alguns anos como jornalista, tendo colaborado com o diário «Público» e o semanário «Sol». É actualmente Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara de Belmonte - terra de Pedro Álvares Cabral.


Actualmente é formador e consultor de comunicação e imagem em empresas e no meio político. Tem editadas as seguintes obras: Romance - «Diário dos Infiéis», edição 'Oficina do Livro', 2010; «Diário dos Imperfeitos», edição 'Kreamus', 2012, Prémio Vergílio Ferreira, 2012. Contos - «Meio-Rico», edição 'Kreamus', 2011;  «O Pássaro dos Segredos», edição 'Kreamus', 2014, conto ilustrado; «Falstaff e o Vinho de Roda», edição do Instituto do Vinho da Madeira (Colectânea). Poesia«Colectânea de Poesia Contemporânea da Beira Interior», coordenador e co-autor, edição 'Kreamus', 2001; «Rio de Doze Águas», co-autor, editora 'Coisas de Ler', 2012; «Para ti», edição 'Kreamus', 2014. Fotografia - «Covilhã e a Estrela» - co-autor (Texto) Fernando Chaves (Fotografia), edição 'Kreamus'. Estudo - «Covilhã e a Imprensa – Memórias de um século: 1864/1964» - edição da Associação Nacional de Imprensa Diária e Não Diária.
João Morgado foi ainda o vencedor do Prémio Literário António Alçada Batista, 2014, com o romance «Gama - O Herói Imperfeito» e do Prémio Literário Correntes D'Escritas, 2015, da Fundação Dr. Luís Rainha, com o romance «O Céu do Mar».



Lídia Raquel apresentando João Morgado
 
Rosa Neves começou por chamar a atenção para o livro «Pássaro dos Segredos», memórias do autor sobre o 25 de Abril de 74, quando ainda era uma criança, do qual ela nos leu um pequeno e sugestivo excerto:

“Havia um xaile de viúva que cobria as nossas vidas. Parecíamos um povo velho a pentear os cabelos brancos, com os dedos por debaixo do negro lenço de merino. Era um tempo de silêncios e ouvidos suspeitos. Coisas do regime, diziam-me. Eu desconhecia o que era isso e vivia feliz, porque o amor não precisa de cores para ser intenso.

Para mim o universo era feito de berlindes e o mundo volteava como um pião de madeira.

(…) A minha casa era finalmente a cores  - tinha a cor dos cravos – (…) Havia um manto de esperança que cobria as nossas vidas. Parecíamos um povo renascido a despentear os cabelos aos renovados ventos que sopravam.”


 
Rosa Neves lê um excerto de «Pássaro dos Segredos»

Do livro «Para ti», Sara Gonçalves, leu o poema “Sereia”:

- Acredito em sereias!
Disse eu com o bolso cheio de mar

- Podes acreditar...
Disseste-me tu,
mulher sem bolso no corpo nu!


 
Sara Gonçalves lendo "Sereia"

Também do livro «Para ti», Mariana Neves leu o poema Sombras:

Não estavas quando cheguei a casa.
Nem eu estava quando chegaste junto de mim.
Não estávamos em casa quando jantámos juntos.

Quando me falaste não estava.
Nem estavas quando eu te respondi.

Não estiveste ao meu lado
  quando te deitaste junto de mim
  e eu senti o toque do teu corpo ausente.

Fomos sombras.
Sombras de gente, nada mais.
Não estivemos nem aqui nem ali.
Nem tu comigo,
                            nem eu contigo.

Solitários sem voz
  eu, tu...
  fomos apenas sombras de nós 


 Mariana Neves lê o poema "Sombras"


Entretanto uma surpresa aguardava os tertulianos. De um extremo da sala, como se surgisse da bruma da História, a passos cadenciados apareceu um nobre e sua gentil dama, que, com cortês reverência, cumprimetaram o convidado. E assim se entrou no tema principal desta tertúlia.



O nobre e a sua gentil dama

Uma cortês reverência ao convidado 
 
O nobre David Teles leu excertos do início do capítulo 10 de «Vera Cruz», onde se caracteriza a personalidade de D. João II:

   “D. João II fora um homem temperamental e severo, por vezes cruel, era todavia um rei amado pelo povo que o tinha por autoritário mas justo - Pola Lei e Pola Grei era a sua divisa. Talvez por isso, na hora da sua morte, tenha sido mais chorado pelo povo que pela nobreza, que sempre lhe sentira o látego disciplinador. "Murió el Hombre!", terá exclamado a rainha Isabel I de Castela. O monarca tinha colocado Portugal no centro do mundo - os Reis Católicos temiam-no, o que era o reconhecimento da sua maturidade e capacidade de visão.


   Tinha recebido um reino depauperado por infindáveis lutas de seu pai contra Castela, um povo explorado, um clero prevaricador, uma nobreza desregrada que não pagava tributos. "Será que herdo apenas as estradas de Portugal?", terá desabafado quando foi aclamado rei, por sentir que estava o reino nas mãos da nobreza corrupta. Homem de visão estratégica, logo tratou de centralizar a governação, arrostando mesmo os seus pares, o que lhe fez ganhar inimigos entre as famílias nobres. Contudo, mostrou-se implacável com os traidores e assegurou um governo forte e autoritário, que disciplinou a Fazenda, equilibrou os poderes e deu corpo ao desígnio de Portugal - expandir-se. Para tal, chamou ao reino os melhores pensadores da época, independentemente do seu credo, criou um centro de saber onde uma elite de fidalgos se formou com todos os conhecimentos da época às expensas da Coroa, instituiu uma rede de investigações e espionagem, negociou com inteligência o Tratado de Tordesilhas, assegurando uma posição estratégica para Portugal no mundo.(...) 




(...) “Mas o seu grande projecto eram as Índias, por isso mandou Pêro da Covilhã, por terra, explorar as terras no Oriente. "É preciso dominar a costa africana e o Índico." O monarca sabia qual o desígnio de Portugal - o mar.
     "Portugal é um animal predador", dizia. "A este animal cuidei eu de três patas - dei-lhe uma forte vontade política, de quem quer, de quem pode, de quem faz; uma sólida base matemática que nos permite entender os ventos e as marés do mundo, abrindo os horizontes; e uma malha de grandes feitorias que muitos proventos nos dão à Fazenda real. Falta uma quarta pata para este animal ser imparável - a ousadia! Mas isso não depende de um rei, mas de um reino inteiro. (...)


  
 Ouvindo atentamente a leitura de David Teles


O autor, depois da leitura deste texto, fez uma intervenção para dar mais informações sobre outros acontecimentos relevantes da ápoca, precisando, com rigor, o seu enquadramento histórico, fazendo, por vezes, oportunas comparações críticas com o que se passa ainda hoje no nosso país. E não deixou de chamar a atenção durante toda a tertúlia para o facto de «Vera Cruz» ser um romance histórico, mas baseado num vasto estudo documental sobre a época, pelo que a coluna vertebral de tal obra, essa, não é ficção. O autor refere, no fim do livro, a vasta bibliografia que consultou, como se de um estudo histórico se tratasse.  

A seguir, a nobre dama Cristina Barbosa leu uma parte emocionante e dramática da trágica vida a bordo das naus:

(...) “Comiam parcas refeições. De tempo a tempo, coziam uns caldeirões de grãos de papas ou lentilhas e bebiam água fervida para matar os gusanos, onde molhavam os poucos biscoitos ainda tragáveis. Comiam frutos secos e pouco mais. Intentavam alguns pescar, mas eram os peixes tão ariscos como o mar que lhes dava guarida, só avistavam tubarões brancos deslizando nas águas alteradas. Por aqueles dias nem o Almirante apregoava "vento", por certo receoso de chamar a atenção sobre si, não fosse alguém ter uma má ideia com a sua carne tenra. É que os homens viviam já em desespero, eram muitos os que armavam a pinguela para apanhar ratazanas, uma praga que crescia de dia para dia - as ninhadas gigantes pareciam sabedoras das artes de guerrear. Arremetiam em legiões, rápidas, com dentes afiados, devastadoras. 
 

Atacavam os doentes e dizimavam o que sobrava nas despensas, roíam as roupas, os mapas se fosse preciso, não respeitava nem a sagrada a Bíblia. Era a guerra pelo território e pela sobrevivência. Só um irredutível trio de gatos anafados lhes fazia frente, por isso não se queixavam com falta de vianda. Ainda que meio embaçados, eram agora os homens que hes seguiam o exemplo - estava decretada a abertura da caça à ratazana. Peladas e passadas pelas brasas, eram um petisco em tempo de fome. "Sabiam a coelho", diziam eles. As bichas tornaram-se mesmo um manjar dos céus naquelas embarcações de fome e enjoos - eram a única carne fresca que metiam no bucho, com algumas borras de azeite e um nico de sal. Havia um mercado negro dentro da nau que vendia as ratazanas já peladas aos doentes ou aos passageiros mais endinheirados. Eram ainda moeda de troca apetecida nos jogos de batota.” (...)


A assistência ounvindo interessada a leitura 
dos vários excertos de «Vera Cruz» e
 as oportunas explicações do autor


Lídia Raquel, para terminar a leitura de excertos, leu a descrição da visita à zona portuária de Calecute, "aquele estendedouro de cheiros exóticos que apinhavam os ares quentes e húmidos - as muitas especiarias, a imensa variedade de chás, as madeiras exóticas e os óleos perfumados":

(...) “O dinheiro local era o fanão, uma moeda de ouro mais pequena que uma unha. No mercado havia moscas bem maiores. Eram tão miúdas que se tornavam difíceis de contar, pelo que logo os árabes idearam umas tábuas com cinquenta alvéolos, por vezes mais. Para conferir pagamentos, era colocado o monte de moedas sobre essas ditas tábuas e, com um ágil movimento circular dos dedos era retirado o excesso de dinheiro de modo que ficasse uma moeda por cada alvéolo, tornando-se mais fácil o seu conto. E assim se fazia a contagem, cada tábua cinquenta fanões. Mas Gaspar da Gama logo alertou que tinham os mouros "unhas longas", onde se encaixava com facilidade uma daquelas diminutas moedas. "Agora compreendo a irritação de Aires Correia, o feitor", exclamou Cabral entre uma gargalhada, "quando ele diz que os mouros estão sempre a enterrar a unha nos negócios e a fanar tudo quanto podem!" E todos se riram com ele.
   Mais à frente, junto à banca onde se vendiam pequenos macacos, uma jovem mulher oferecia os cabelos em pleno mercado. O homem que estava com ela passava-lhe os dedos pelos cabelos sedosos, muito pretos, longos. Em torno dele gritavam os mercadores, gritando valores como num leilão. Alguns arrepelavam-lhe os cabelos para verem se era resistente. Ela chorava. Matutavam os portugueses quanto valeria aquele cabelo num mercado de Lisboa para dele se fazer uma cabeleira da moda. Por certo umas boas moedas de ouro. Um último grito de um árabe gordo e o mercador baixou a cabeça várias vezes e aceitou vender a vaidade da filha. Por tuta-e-meia, uns míseros fanões, viu a jovem serem-lhe arrancados os cabelos com uma lâmina. Os cortes foram tão rentes mas tão rentes, que lhe ficou a cabeça descoroada da sua beleza e cheia de talhos feios e sangrentos. Poderia também vender as lágrimas, que eram muitas. Mas o mouro gordo não lhe olhava sequer para o rosto. Sorriu e, num instante, levou-lhe os cabelos pretos que durante anos ela tinha penteado a cada manhã.(...)
 

(...) “Outra mulher veio oferecer a sua filha para o prazer dos mercadores, pedia um fanão, um simples fanão, nada mais. Tão-somente isso pedia pela pureza da filha, criança ainda, tal era o desespero e a fome. Como podia aquela terra ser de tais extremos, pensava Cabral, que conhecera a sumptuosidade do samorim, a riqueza dos mercadores, e olhava agora o rosto da fome naquela criança oferecida.
   Mandou que lhe dessem uma bolsa cheia de fanões, "discretamente", para que ninguém visse. E, assim, mãe e filha arrecadaram uma riqueza vinda dos deuses que, se não fosse roubada pela família ou por outras gentes da mesma igualha de famintos, lhes daria alimento por muito tempo.(...)



Entretanto a distinta nobreza que nos visitara, saíu de cena, inesperadamente, para azinha regressar novamente das brumas da História, desta feita para presentear tanto o convidado, como toda a assistência, com finos bolos, delicada e deliciosamente confeccionados com canela vinda directamente das Índias, nas naus de Pedro Álvares Cabral...
 


E assim, para não contradizer o poeta Sá de Miranda (séc. XVI) - “ao cheiro desta canela o Reino se despovoa” -, com este doce final aquela sala se despovoou” mesmo, terminando da forma mais agradável possível o último Café com livros desta época. Estará de regresso em Setembro, com programa e local a anunciar.

Até lá não recusem

um café quente

um livro fresco

uma ideia nova  


Fotos (excepto as identificadas), texto e edição de augusto mota

1 comentário:

Unknown disse...

Fantástica e sóbria reportagem! Obrigada Augusto.