17/12/2005

O Inconsciente

Estou sentado e chove. Não consigo parar de chorar. A dor é forte. É como se estivesse lá. Ali, no lugar onde sempre estive, a olhar para mim, a atormentar-me, a dizer-me:
Não valeu de nada. Não valeu de nada. Não valeu pois não? Se não é possível fugires? Se não é possível não teres medo?
Para lá do vidro, a manhã começa a cansar a noite que se esvai como o sangue num pulso cortado. O horizonte é cinzento e roxo. Todas as sombras se confundem, todos os animais e homens também. Esta casa tresanda a mofo. É pobre e triste todo o ano. Embora da janela da sala eu possa espiolhar o mundo. Chamar mundo a isto. Abrir a janela e respirar. Ver a cidade, os edifícios, o jardim, a praça, os entes que passam, os cães que latem, e imaginar que as gruas de cabeça de martelo são apenas girafas amarelas, debruçadas sobre as árvores, alimentando-se das copas em pleno exercício de liberdade.
A minha casa é igual a todas as outras casas, embora as suas paredes sejam pintadas de azul. Anil. É como se todas as vidas, todas as acções, humanidades e humidades, todos os medos e raivas, perpassem, também, por estas mesmas paredes e recantos, inflamando primeiro o ar, depois os pulmões, deste aroma nocivo e familiar a um bolor humanitário.
As casas são como esqueletos de almas. Porquanto os homens expiram, deixando-se morrer; enterram-se alcochoados ao caixão; são comidos por larvas, servem de proveito; e o que daqui sobeja são apenas ossadas, fotografias, tectos e paredes rebocadas.
A chuva entretanto cessou. Já não a ouço cair. A mão deixou de me doer. Já não a tenho outra vez. O vulto do homem corajoso, do homem sem guarda-chuva, do homem anónimo que enfrentava a intempérie vestindo um impermeável amarelo, também desapareceu.
Os vidros estão sujos. As ruas estão sujas. As nuvens espaçadas. Hoje é terça-feira. Primavera. Depois será quarta. Quinta e sexta. Sábado e domingo. E segunda outra vez. E terça. E terça. Sempre terça como um terço. E outra vez, Verão, Outono, Inverno e Primavera. E terça. E Primavera. E quarta quinta sexta. Verão Outono Inverno. E sábado.
E eu sentado. Já um homem que não consegue mais chorar.
Há coisas tão evidentes que não encontro palavras.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No Céu não há limões".

4 comentários:

Anónimo disse...

Este miúdo ( permito-me falar assim porque o conheço, há muito )sempre prometeu largos vôos. Não lhe cortem as asas porque ele vai muito longe...Tem garras de condor...

Anónimo disse...

Ando por aqui a deixar, aos Amigos, votos de um Feliz Natal e um próspero Ano Novo.

Anónimo disse...

Um abraço pleno de Votos.

Anónimo disse...

Um texto cheio de vigor e ritmo tão ao jeito de Sandro Junqueiro. Para quando um novo romance?