De noite se constroem cidades. De noite se voa sobre as cidades que vivemos e imaginamos, enquanto os olhos correm sobre uma paisagem de milhares de pontos luminosos a debruar os caminhos das trevas. Tantas luzes vistas do cimo do monte, a brilhar lá em baixo e ao longe, transformam a noite numa imensa basílica onde os peregrinos somos nós que pagamos a promessa de viajar eternamente entre as mãos e a madrugada. As orações são os novos sentidos do corpo e o oficiante é o desejo que, humilde, celebra o renovar de todas as caminhadas. Atravessamos o território da noite enquanto milhares de velas cintilam no vasto recinto ou se espalham, atentas, pela escadaria sagrada. São figurantes que aguardam, extáticos, que alguém escreva o libreto de uma monumental ópera cujos ensaios vão decorrendo ao longo dos ofícios nocturnos. Antecipamos, só para nós, a chegada da carruagem divina, puxada por oito corcéis brancos, com estrelas azuis a decorar os finos arreios de ouro e prata. Vindo de longe, do meio das nuvens e da lua cheia, um carro alegórico atravessa a colunata e estaca mesmo em frente da multidão ansiosa. Um coro entoa salmos que elogiam os anjos e os tronos de onde eles zelam pela sombra de nossos passos. Abrem-se as portas da carruagem e a rainha da noite, de largas vestes azuis e brancas, desce suavemente, por entre harpas e trombetas, amparando uma luz no seu regaço e erguendo um sol na mão direita. Caminha, agora, sobre um tapete de incenso e de ervas aromáticas, até se diluir por entre as luminárias que redobram os seus lampejos para, de súbito, tudo se apagar da memória, tudo ficar uma noite escura vista do cimo do monte, com luzes reais a brilhar lá em baixo e ao longe. Descemos da noite e do monte pelas estradas íngremes da emoção, a caminho da nascente de um rio claro que atravessa as mãos e desagua na infância do olhar, todos os dias ao pôr-do-sol. Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.
5 comentários:
Escrevem-se textos como quem vislumbra um cenário.
Escrevem-se textos como quem pinta um quadro.
Escrevem-se textos como quem fotografa uma imagem.
Mas
escrevem-se textos para serem lidos.
Escrevem-se textos para os outros.
Escrevem-se
os textos
para nós
e os outros
leem-nos
e aos poucos
roubam
bocados de nós.
O tempo agreste convida-nos a ficar em casa, visitando e lendo os blogues de consulta obrigatória.
Lendo e relendo este e outros textos da “Geografia do Prazer", retenho sempre a minha atenção em duas metáforas recorrentes que se cruzam : a "noite" e as"mãos". A mim, parecem-me polissémicas – posso descodificá-las por vários rios... Mas as “mãos”, levam-me sempre, a priori, à significação que tiveram para os existencialistas - penso em Sartre e Cocteau - a vida que cada um tem nas suas mãos . Mas será que aqui a metáfora não é outra e mais profunda ? A dúvida persiste ...
E dessas noites inglórias fica-nos a saudade...
Mas que agradável surpresa. Nunca pensei. Virei mais vezes...
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