23/02/2006

o ciclo das sementeiras

Junto do fogo moldámos as mãos ao sabor dos frutos que rescendiam à luz trémula das labaredas. Ateámos ainda mais o fogo e logo todo o pomar vibrou com o crepitar da lenha de pinho, que lançou mil chispas em todas as direcções, como se fosse artifício de festa. Era, antes, a natureza a festejar o seu ciclo das sementeiras de Inverno. E, também, da floração dos ramos das amendoeiras ( Prunus dulcis ). Em flor parece estar já tudo o que a fogueira incendeia e se reflecte nos olhos avermelhados pelo calor das brasas. E, nos gestos que cortam o silêncio, adivinhamos o abrir rosado das flores da magnólia ( Magnolia soulangeana ) que, como dedos sequiosos, afagam o orvalho que a noite vai fazendo cair em nossas mãos.
A frescura da noite avança sobre as horas que temos de cumprir. A fogueira vai-se extinguindo e as brasas mortiças já não conseguem enxugar as mãos e o orvalho.
Os botões da magnólia vão continuar a abrir durante toda a noite e, amanhã, os dedos percorrerão, pétala a pétala, todas as flores em busca do fogo e dos frutos que moldaram as nossas mãos. E quando, na árvore nua de folhas, estiverem abertas todas as flores, será como que a natureza a festejar o seu artifício e a inaugurar o ciclo das sementeiras da Primavera.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.

5 comentários:

Anónimo disse...

Hoje a minha volta é muito mais cedo. E cumpriste o prometido, Maria Gabriela.
Felizmente, temos de volta os textos de Augusto Mota, e este reflecte a exiguidade do momento presente.
Muito obrigado, principalmente, pelo não dito, pelo pressuposto. Pelo exercício mental a que nos obriga, Augusto Mota. E não tarde, com mais textos. Fazem sempre falta.

Anónimo disse...

No Ciclo das Sementeiras, ao Inverno segue-se a Primavera, indício, aliás, deixado pelo próprio autor no fim do texto. Espero que, no blogue, a sucessão seja a mesma. Fico à espera do texto da Primavera, Augusto Mota.

Anónimo disse...

Ficamos, caro amigo. Ficamos.
Um abraço!

Anónimo disse...

Um magnífico texto rodeado por duas magníficas imagens.
Um abraço ao "magnífico" autor, à espera de mais.
( Porque há noites "magníficas" )

Anónimo disse...

Pois a minha volta por aqui, hoje, foi mais tardia, ao invés do Manuel Maria. Mas assim, ganho também os vossos comentários. Mas aqui estou, Anamar, como prometido, depois de um dia muito longo. Tão longo que me pareceu ter chegado numa "magnífica" noite de Primavera, já. Não conhecia este texto do Mota que me agradou muito. Encontro nele, cruzados, dois feitiços: a atracção do fogo na lareira e a fascinação da natureza revivida no pomar/jardim. Conjugados como aqui apparecem, resumem a VIDA.
Até ámanhã, boa noite.