Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
( Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios. )
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Plazza della Signoria...
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário. Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são. Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo de praia? Esta era a inteligência que Deus nos deu. Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente,
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios. Teus olhos habituados à observaão dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso, estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo
caindo
caindo
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos. António Gedeão, in Obra Poética, 2001.
7 comentários:
Ora diga lá, Maria Gabriela, se estes dois antepassados nossos ( um muito mais antepassado do que o outro, está visto ...) não são tão simpáticos ! Dois homens naturalmente cultos, homens de ciência como eu a entendo que deve ser - despretensiosa e alegre: dois sábios bonacheirões e com humor. Como não haveriam de se entender ?! Está decidido : são os meus "tios antigos" mais queridos. E da menina, não ??
eh!eh! pois então! está claro... e já reparou, querida Amiga, que ambos são aquarianos? e, por agora, me fico ( com uma estrondosa e maquiavélica gargalhada ).
Ai, ai, ai ... meto-me em cada uma !
É sabido que os aquarianos são muito dotados para as artes e ciências pela sua sensibilidade.
Feliz a reabertura das portadas do Palácio...Olá, Amigas! Então e eu, não há lugar para mais um cafezinho, à maneira?
E para mim? Também quero. Ora!
Trouxeram chávenas?? Vá, venham lá conversar e beber um café ou um chá, que a Maria Gabriela convida ... e falar destes acontecimentos antigos que tão actuais são, para o bem e para o mal. Ao reler os textos ( todos) hoje publicados, pensava como, após tantos séculos, o ser humano continua tão intolerante : não aprendeu NADA com os erros da História !
tem toda a razão, Fernandinha. tem-na quanto à intolerância e tem-na, igualmente, no que concerne ao chá. convido, sim senhora. com muito gosto.
e ofereço sconnes para acompanhar.
mas, as chávenas, quem as traz?
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