27/07/2014
Texto breve
O LUME
O chefe da polícia cria galinhas na capoeira que herdou, com a casa, dos avós.
Quando chega a casa, dedica-se às poedeiras. O cão rodeia-o solícito lambedor da autoridade agora civil. Há laranjeiras no pátio, que rega por sulcos abertos a enxada: autor de caminhos da água. O chefe da polícia é sossegado. Só o desassossega a memória quotidiana da cabeça do guarda 1253, cujos malares romanos, perfeito nariz e queixo duro guardam a toda a volta a boca comedora de beijos. Cuidadas as galinhas, o chefe da polícia divide a ceia com o cão, senta-se a fumar nos degraus da marquise aspirando o suor das laranjeiras. Lá dentro, no fogão de ferro, o lume arde para ninguém. 1253 menos 1253 igual a zero.
Texto de Daniel Abrunheiro, in «O Preço da Chuva», Pé de Página Editores, Coimbra, 2006, p. 41.
Foto de Augusto Mota, 26.07.2014, com os agradecimentos ao dono do prato, que é exemplar único, feito por encomenda.
24/07/2014
Oito quadras
MINHA MÃE AMASSA A VIDA
Minha mãe amassa a vida,
E a vida cabe-lhe inteira
Na farinha desmedida,E a vida cabe-lhe inteira
No infinito da peneira.
Minha mãe amassa e diz
Pra dentro do coração,Que só pode ser feliz
Quando os outros também são.
Minha mãe amassa e crê
Na grande família humana:Que o pão a todos se dê
E toda a gente se irmana.
Minha mãe amassa e teme,
O que pensando aprofunda,Com gente mesquinha ao leme,
A barca humana se afunda.
Minha mãe amassa e sabe
Que em seu grande coração,O Amor do mundo cabe,
O ódio, esse é que não.
E, enquanto amassa, escreve
Sobre a massa a levedar,Com essa grafia leve
Que o coração sabe usar.
E as palavras que escrevia,
Paz e Amor, passarão,Como em gesto de magia,
Pra dentro de cada pão.
Ela amassa enquanto lavra
O chão do seu pensamento:Amassa o chão da palavra,
Da palavra faz fermento.
António Simões
foto: Augusto Mota / Centro de um Hibisco (Hibiscus rosa-sinensis)
Crónica
Fazem as pequenas pedras os grandes edifícios. E pequenos, por igual ideia, parecem os homens que organizam as ditas pedras de modo a que a História encontre marcos no tempo que passa. Que passa para as pessoas, não para os monumentos. A Batalha, toda ela, vila e mosteiro de Santa Maria da Vitória, evoca essa comparação. Não é possível perante a beleza descomunal daquela pedra, evitar a íntima inquietude de sermos, nós pessoas, ínfima areia. E que só ela, junta e trabalhadora pedra, é eterna. Ainda assim, retenhamos de uma visita à Batalha (que é, como em tantos outros casos de amor, uma revisita) a noção de que a alma colectiva existe. E que olhando nós o que invisíveis e dissipadas mãos ergueram, também mãos damos ao que eles quiseram olhar por dentro e de frente: a alma da História, a nave do Tempo, as abcissas da Memória.
Visitada, revisitada, nunca esquecida, a Batalha exalta deste modo uma vitória mais secreta que a de Portugueses sobre Castelhanos: o triunfo da arquitectura sobre o esquecimento. Ou a morte da Morte, por assim dizer.
Daniel Abrunheiro
in www.canildodaniel.blogspot.pt / 23 de Julho de 2014
foto de Augusto Mota
19/07/2014
18/07/2014
05/07/2014
03/07/2014
Apresentação de livro
CONTOS NO TERREIRO AO LUAR DE AGOSTO
No passado dia 28 de
Junho teve lugar no museu Moinho do
Papel, em sessão presidida pelo Dr. Gonçalo Lopes, vice-presidente da
Câmara Municipal de Leiria e vereador da Cultura, a apresentação do livro de
Júlia Ribeiro «CONTOS no TERREIRO ao
LUAR de AGOSTO», numa edição da Âncora Editora, obra que reúne num só
volume três títulos editados anteriormente
e há muito esgotados: «Contos ao Luar de Agosto» I (2000), «Contos ao Luar de
Agosto» II (2001) e «De Olvido e de Silêncio» (2001).
A autora: Júlia Ribeiro / O apresentador: Augusto Mota
Esteve ainda presente Sofia Diogo, como
representante da editora, que deu início à sessão para agradecer a presença do
público e do vice-presidente do Município, passando, de seguida, a palavra ao
Dr. Gonçalo Lopes que se congratulou por a autora ter, mais uma vez, escolhido
o Moinho do Papel para apresentar outra obra sua, já que tal espaço museológico
lhe parece o mais indicado para tais iniciativas, dada a sua histórica ligação
à tipografia em Leiria, pois sem papel não haverá suporte físico para a
impressão. Lembrou ainda que foi em Leiria que, em 1496, foi impressa a primeira edição do «Almanach Perpetuum», de Abraão Zacuto.
A representante da editora no uso da palavra
O Dr. Gonçalo Lopes felicita a autora por ter escolhido o espaço museológico...
... do Moinho do Papel para a apresentação do seu livro
Fui um pouco relutante em aceitar o
convite da autora para apresentar esta reedição ao público de Leiria, mas
quando recebi a obra e, numa primeira leitura, entrei no ambiente ora
fantástico, ora fantasmático, de muitos dos seus textos, logo o meu natural
pendor para o onírico e o surrealista ficou cativado, pois me vi entre
feiticeiras, lobishomens, a aparição de seres malfazejos, ou de mau agoiro, e,
para num outro registo, me encantar com a criatividade e originalidade da
história das “armazonas” e de outras onde perpassam lições de moral, ou de uma cativante
humanidade.
Mas foi uma aventura num território
geográfico e linguisticamente desconhecido para mim. O glossário final não
cobriu todas as minhas deficiências em relação aos vocábulos e expressões
próprias do falar das terras de Moncorvo, mas tal não impediu, nem impedirá
qualquer leitor de acompanhar interessado o desenrolar das histórias contadas,
nas noites quentes, no terreiro da Corredoura, ao luar de Agosto.
Uma intervenção bem humorada da assistência desencadeou a boa disposição..
Mulheres e homens de idade são o
repositório da história viva e vivida da aldeia da Corredoura, contos, lendas e
mitos rurais que a autora terá ouvido na sua infância, ou mediante aturada pesquisa
já como adulta, de onde não anda arredado um certo interesse pela antropologia
cultural, pela sociologia e pela etnografia. São várias as vertentes segundo as
quais podemos abordar esta obra: desde a riqueza de um típico vocabulário
onomástico, aos preceitos e preconceitos ainda vigentes nos anos a seguir ao
fim da Segunda Guerra, naquele espaço muito mais perdido no tempo do que o
resto deste país. Tudo isto traz a autora até nós numa prosa simples, como
simples são as personagens que retrata, mas que, por outro lado, eu também ousaria
classificar de prosa musculada e realista, que não trai as suas origens
transmontanas, nem as personagens a quem dá vida, fazendo com que o leitor as
odeie, ou as ame, consoante a trama em que estão enredadas. Assim, pelo menos
no caso presente, a autora consegue afastar-nos da falsa dicotomia “escrita de
homens / escrita de mulheres”.
A primeira parte desta obra - “Contos ao Luar de Agosto” - são "recontos", porque tais textos, uns mais breves, outros mais extensos, são contos populares recontados pela
autora, mas que, apesar disso mantêm a estrutura do conto oral popular:
brevidade, unidade temática, unidade de tempo, unidade de espaço, número
reduzido de personagens, sendo o diálogo uma característica dominante, que
prende o leitor até à última linha.
Segundo a autora “Estes contos, histórias, poemas, lengalengas fazem parte do nosso
património cultural imaterial. Será a parte menos visível, mas nem por isso a
menos rica. Penso que é um crime deixar que se perca. E seremos todos
responsáveis por tal perda.
É que aquelas histórias alimentavam o
imaginário de gerações de pessoas – na sua maioria analfabetas – e constituíam
uma forma de socialização extremamente importante. Eram também um código de
normas de vida e de princípios morais: o bem vencia, o mal era vencido. E se,
no imediato, parecia o contrário, o bem passava o testemunho a um vencedor
futuro.
Havia histórias brejeiras, picarescas, de
tom irreverente e rebelde, que divertiam, que obrigavam à gargalhada sadia,
porque rir é necessário. Os homens eram os contadores.
Por seu lado, as histórias das velhas tinham
sempre um conteúdo muito denso, pesado mesmo, por vezes arrepiante, com o seu
quê de religiosidade e de magia e o desfecho era, com raras excepções, trágico.” (in Introdução, p.21)
Mariana Neves foi a fotógrafa oficial do "Palácio das Varandas"
A professora Vera Lúcia Pessoa, na sua
tese de Mestrado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) abordou
a temática dos contos de Júlia Biló Ribeiro com um estudo intitulado «A alma de ferro dos moncorvenses nos
contos de Júlia Biló», no qual afirma que “A literatura popular oral foi, através dos tempos, relevante na
transmissão de saberes e valores ancestrais às gerações vindouras. Esta
literatura de transmissão oral tinha e tem ainda, com a divulgação de contos
como estes, alguma consistência na memória colectiva das gentes mais velhas
desta região, e permanece como factor estético da vida das colectividades
rurais”. (p.20)
Encontro com um grande amigo que veio de longe para assistir à sessão...
Para melhor entendermos o fôlego desta
obra, respigamos do prefácio de Rogério Rodrigues, um acérrimo defensor da
cultura transmontana, este simples parágrafo: “Júlia Ribeiro confere ao diálogo um grande espaço discursivo. O
manejar linguístico torna a sua prosa extremamente visual. Sente-se melhor, e é
visível nos contos, quando o narrador é uma mulher. Ela própria o confessa ao
afirmar que os contos dos homens «não tinham para mim o poder encantatório,
aquela magia das histórias das velhas» (p.15)
Outro encontro com amigos: Carlos Alberto Silva e Luís Mourão
E a sessão terminou com o tradicional autografar da obra apresentada
Este meu texto reflecte apenas, em parte, o que foi
dito na apresentação da obra em apreço, pois procurei fazer, num improviso fundamentado
em leituras colaterais, uma apreciação emotiva dos contos que mais tocaram a
minha sensibilidade, dentro dos parâmetros acima referidos, procurando que a
assistência comigo viajasse pelos territórios mágicos e míticos que esta obra
da Júlia Ribeiro me proporcionou.
Texto e edição de Augusto Mota
Fotos de Mariana Neves, excepto a identificada.
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