02/11/2014

A Matança do Porco




MEMÓRIAS  DE  UM  CONDENADO  INOCENTE


A Faca

O Alguidar do Sangue


Armado de paleta e pincéis, com as cores emprestadas pela natureza, Carlos Alberto Alves, escondido por detrás de uma azinheira, nas cercanias do monte onde vive a curta distância de Estremoz, espera que a vara de porcos se aproxime. Por cima da sua cabeça, contra o azul do céu debruado de vaporosas nuvens brancas, sobre o doce e doirado murmúrio da seara e o castanho barrento da terra, balouça um ramo de bolotas.
Um dos porcos pára e mira-o gulosamente. O pintor não hesita, e com o laço plasticamente armadilhado do seu olhar atento leva o porco e o ramo para dentro da paleta. É ali, antes de se imobilizar nas telas, que imagino o animal correndo atrás do seu alimento preferido, sua derradeira refeição de condenado à inocência do seu viver, antes que o seu criador cromático o desmembre em vários pedaços (olhos, orelhas, boca, pernas, etc.), para depois magicamente o reconstituir e lhe devolver a forma e a vida. Mas logo quatro homens, vestidos das cores dos campos alentejanos, debruçam-se sobre o seu corpo e o imobilizam, e dois carrascos, no cinzento anódino das suas fardas, dão-lhe o golpe fatal. E ali fica ele perpetuamente a atroar os ouvidos da memória de muitos de nós com os seus guinchos de agonia. Ei-lo que repousa agora, pendurado do chambaril, na pureza dos panos brancos que o envolvem, para que o sangue escorra para dentro do alguidar de barro, depois da pele ter sido chamuscada e raspada.   

Vestido das cores das searas, do verde do princípio e do oiro da sua maturação, um gentil corpo feminino corta a carne em pequenos pedaços com que outras mulheres vão fazer enchidos que irão ser curados sobre o fumeiro. Outra mulher, o rosto escondido por um candeeiro, segura uma panela de cachola e numa qualquer taberna um grupo de amigos petisca a saborosa carne, nas muitas maneiras em que é cozinhada.
Atravessa esta vintena de quadros, compostos com as cores da nossa amada terra alentejana, harmonicamente combinadas com delicada mas rigorosa geometria, uma memória de vida e de morte. A história deste condenado, é simbolicamente a nossa própria história, que vivemos e morremos, e para sempre ficamos nas memórias que guardam de nós, no que fica do que fomos e fizemos. Mas o anónimo porco, que o olhar e as mãos de Carlos Alberto Alves souberam retratar, a única condenação que sofreu foi a de viver para sempre, vencendo a própria morte imortalizado nestas telas.

António Simões, Estremoz, Outono de 2004

in catálogo da exposição de pintura de Carlos Alves "Memórias de um condenado",
Casa do Alentejo, Lisboa, Novembro de 2004.

O Chambaril

  
A Raspadeira


Óleos sobre tela / dimensões: 30 x 40
Fotos de José Cartaxo (reproduzidas do catálogo)
 
 
 Edição de augusto mota

1 comentário:

Júlia Ribeiro disse...

Gostei do texto e das telas. Não conhecia sequer o nome do pintor.

Júlia Ribeiro