SOL
Um menino brinca no pátio, o sol pinta o mundo, a bandeira nacional sassarica de verde, vermelho, verde, vermelho: como uma boca de mulher sobre fundo de bosque. Sentado rente a um aperitivo, aprecio a arte da brisa, que faz levitar menino e bandeira.
É uma segunda-feira de sol. Depois de tantos dias de chuva, de tantas jornadas foscas como uma lâmpada velha, o céu, muito lavado, derrama uma bonomia que faz bem. Estou aqui há meia hora. De modo que durante cerca de trinta minutos não fui mortal, não tive passado nem futuro. Apenas e só o sol. Não é em vão que as três primeiras letras de solidão escrevem o astro-rei. Mas, no caso luminoso de que vos falo, trata-se de uma solidão boa, encontro de alguém com a sua própria luz, o seu lugar no dia, a consciência da pedra no grande tabuleiro do mundo.
Levanto-me, semicerro os olhos, afasto-me. Olho para trás: já não há pátio nem menino, a bandeira dissolveu-se no ar que arrefece. Dizem-me que isto é a noite: a dissolução das coisas, o fim da pintura, o veludo da absolvição. Sorrio: também na palavra absolvição estão as três letras do sol.
Meto-me no carro, acendo os faróis, faço parte da fila de bichos cansados de regresso às cavernas de renda mensal. Mas nada disto me afecta. Inutilmente vai o rádio repetindo que é uma hora da madrugada. Mentira. Vede: ali está o pátio, a bandeira sobe para celebrar o país do céu, não tarda aí o menino. Ao sol, claro.
Claríssimo.
Daniel Abrunheiro, in «Cronicão | Gente do Touro de Ouro | Noite de Homens-Cantores», Publicenso - Imagem & Comunicação, Lda., 2003, p. 40
Ilustração: augusto mota / pormenor do desenho de uma das sobrecapas da Livraria Martins (de boa memória), Leiria
editado por Augusto Mota
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