06/11/2014

Rosário Breve




SÓ  MEIA   BOCA   ESTA    SEMANA





 As chuvas regressam no dia em que dois dos meus últimos dentes naturais se avariam – parece-me que sem outro remédio que o de expor-lhes ao sol as raízes. Metade da boca fecha-se-me em si mesma, concentrada toda no intuito de não assanhar mais ainda aqueles dois focos de dor latente. A outra metade faz pela vida: por ela ingiro, por ela profiro, por ela não tanto me firo.
Enquanto isto, a bátega pluvial faz-se harpa no mundo visto desde o terceiro-andar do convalescente. O vento ajuda à festa do alumínio, vergando a cerviz dos choupos, tremulando a labareda dos cedros e descascando a sarna aos plátanos. Os carros patinham nos lagos instantâneos das rotundas. Como dedadas, as folhas mortas digitam os terreiros, juncam os pátios, acolchoam os bancos desertados pelos velhos. Os gradeamentos rangem aquele reumatismo tão próprio do metal exposto ao público. É tudo de uma beleza soturna: e menos soturna e mais bela seria, caso eu pudesse acudir-lhe com a boca toda.
Procedo portanto por estes dias ao mesmo a que procede o meu País: de traseiro sentad’oxidado, espero melhores dias. O televisor arde de manhã à noite como uma lareira fria. Por ele perpassam as mentiras eufóricas de Wall Street, as (ameri)canalhices do costume: os derivados, os lixos tóxicos, a Crise – e as suas marionetas do lado de cá do mar: a platinada Lagarde do FMI, o peixe-balão menos durão do que barrosão, o escol de bruxas & bruxelas que, sob a mentira nada pia da Democracia, fossam a ditadura de facto da miséria obrigatória, a começar pela moral e a acabar na dos vãos de lojas fechadas sob cartões frigoríficos.
Aproveito uma nesga de sol para me fazer à rua. Deixo amornar a bica, sorvo-a por meia beiça. Fumo pelo lado da boca como os pescadores dos postais ilustrados. Leio metade do jornal, presto metade da atenção à eterna repetição do mundo em diferido perpétuo. E é em unto de esperança de que não seja preciso arrancá-los que torno a casa a horas do antivinhótico e das papas-de-leite com poalha de canela.
Por há anos não ter em casa cão ou gato, fazem-me companhia o Jorge Jesus e o Crato. Por só a mulher ganhar para pão & tabaco, faz-me muita pena a pobreza do Cavaco.
Derivo pela habitação, por assim dizer, em éter: espero quem e o que não prometeram vir. Foi-se a nesga de sol. Enchumaçado a chumbo, o céu de noroeste indefere o esmalte das coisas – e o pombal de dias bons, hoje transido e famélico, recolhe aos nichos secretos onde a força aérea da passarada resiste à bélica invernia natural. Cerro os estores da sala, anicho-me na colcha pulguenta de há tantos anos ex-dentários e dormito como um idoso preso pelos arames das horas ao torno das décadas, sonhando-me nada menos do que Albarran-Homem-da-Embalagem-Prateada.
(Mas na verdade sonho mas é com nada.)


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», de 6 de Novembro de 2014





Edição e fotos de Augusto Mota


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