SÓ MEIA BOCA ESTA SEMANA
As
chuvas regressam no dia em que dois dos meus últimos dentes naturais se avariam
– parece-me que sem outro remédio que o de expor-lhes ao sol as raízes. Metade
da boca fecha-se-me em si mesma, concentrada toda no intuito de não assanhar
mais ainda aqueles dois focos de dor latente. A outra metade faz pela vida: por
ela ingiro, por ela profiro, por ela não tanto me firo.
Enquanto
isto, a bátega pluvial faz-se harpa no mundo visto desde o terceiro-andar do
convalescente. O vento ajuda à festa do alumínio, vergando a cerviz dos
choupos, tremulando a labareda dos cedros e descascando a sarna aos plátanos.
Os carros patinham nos lagos instantâneos das rotundas. Como dedadas, as folhas
mortas digitam os terreiros, juncam os pátios, acolchoam os bancos desertados
pelos velhos. Os gradeamentos rangem aquele reumatismo tão próprio do metal
exposto ao público. É tudo de uma beleza soturna: e menos soturna e mais bela
seria, caso eu pudesse acudir-lhe com a boca toda.
Procedo
portanto por estes dias ao mesmo a que procede o meu País: de traseiro sentad’oxidado,
espero melhores dias. O televisor arde de manhã à noite como uma lareira fria.
Por ele perpassam as mentiras eufóricas de Wall Street, as (ameri)canalhices do
costume: os derivados, os lixos tóxicos, a Crise – e as suas marionetas do lado de cá do mar: a platinada
Lagarde do FMI, o peixe-balão menos durão do que barrosão, o escol de bruxas
& bruxelas que, sob a mentira nada pia da Democracia, fossam a ditadura de facto da miséria obrigatória, a
começar pela moral e a acabar na dos vãos de lojas fechadas sob cartões
frigoríficos.
Aproveito
uma nesga de sol para me fazer à rua. Deixo amornar a bica, sorvo-a por meia
beiça. Fumo pelo lado da boca como os pescadores dos postais ilustrados. Leio
metade do jornal, presto metade da atenção à eterna repetição do mundo em
diferido perpétuo. E é em unto de esperança de que não seja preciso arrancá-los
que torno a casa a horas do antivinhótico
e das papas-de-leite com poalha de canela.
Por
há anos não ter em casa cão ou gato, fazem-me companhia o Jorge Jesus e o
Crato. Por só a mulher ganhar para pão & tabaco, faz-me muita pena a
pobreza do Cavaco.
Derivo
pela habitação, por assim dizer, em éter: espero quem e o que não prometeram
vir. Foi-se a nesga de sol. Enchumaçado a chumbo, o céu de noroeste indefere o
esmalte das coisas – e o pombal de dias bons, hoje transido e famélico, recolhe
aos nichos secretos onde a força aérea da passarada resiste à bélica invernia
natural. Cerro os estores da sala, anicho-me na colcha pulguenta de há tantos
anos ex-dentários e dormito como um idoso preso pelos arames das horas ao torno
das décadas, sonhando-me nada menos do que Albarran-Homem-da-Embalagem-Prateada.
(Mas
na verdade sonho mas é com nada.)
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», de 6 de Novembro de 2014
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