13/10/2005

( domínio )

Encostei-me a uma sensação e despenhei-me pelo abismo do meu sangue. Ah! Como domino estas flores e estes pulsos que ergo para ameaçar a derrocada! Grito! Grito por mim abaixo e sinto nos pés a força deste caminhar. Vou para oriente. Aí repousa a memória dos dias e revejo-me criança. Esta queda em minha infância parece-me insidiosa. É justa, contudo. Sinto-lhe o valor e albergo nela todos os gestos que hoje me amparam as sensações. Por isso este desfalecer encostado à memória me traz uma satisfação de juventude e uma força de método.
O sangue agora é outro e a mulher que me atravessa a garganta verticalizou-se apoiada ao mais belo de mim. Respiro com outra dificuldade e tenho que dizer às mãos que a poesia já não é um grito de pássaro, ou um grito de flor. A poesia, agora, é tudo o que vibra entre os meus dedos. As sinfonias passaram a ser outra coisa, mas a mesma coisa vista de outro modo. O maestro sou eu. Domino a orquestra com um simples gesto, ou repudio a liberdade das escalas musicais.
Outra maneira de me encostar às sensações é este costume de domínio para perceber o que tento criar. A criação parece ser, portanto, uma sensação de domínio que nos é oferecida para nosso próprio governo.
Augusto Mota, inédito, in "Artifício da Loucura", 1964.

8 comentários:

Anónimo disse...

Forte e belíssimo este texto de Augusto Mota.
Satírico.
Esta fuga à infância onde tudo é permitido. Atéos erros. Assumidos a oriente. Aí,onde as mõs confundem os acordes em que ele é o maestro.
Mas a música, como a poesia fogem-lhe por entre os dedos.
A sensação de ser para além do existir.
Magnífico, Maestro.

Anónimo disse...

Também eu fiquei subjugada com a leitura deste texto. Li-o e reli-o. E mais forte o encontrei num segundo momento. Em crescendo qual partitura.
Lindíssimo.
Mas não concordo quando o Augusto Mota afirma que necessita de se encostar às sensações para criar. A criação não pode, em momento algum, ser uma sensação de domínio. Quando aprisionada, domestica-se, e deixa de ser criação. Passa a banalização. Criação é, antes do mais, liberdade e não posse ou domínio.

Anónimo disse...

Curioso, meninas!
E particularmente interessante esta leitura feita pela Teresa com a qual, no entanto, não concordo. O que o Augusto Mota pretende dizer quando refere as sensações - daí o seu grito e o erguer de pulsos - é a necessidade de interiorização de todo o processo criativo. Nele, tudo passa além do "cogito", desprendendo-se da fórmula cartesiana, para assumir as emoções como primórdio de criação.
Teresa, leia o "Erro de Descartes". Aí percebe as afirmações de Augusto Mota.
E parabéns ao Autor. Soberbo este texto. De poeta.

Anónimo disse...

Há neste texto de Augusto Mota uma chama viva, um canto à criação, um desespero à vida, um agigantar face à criação.
O regresso à infância como fuga.

Anónimo disse...

bom, vejo-me um bocado aflita para responder a estes comentários...
acho que não sou a pessoa indicada. mais uma vez caberia ao Augusto Mota fazê-lo.
o mais que posso é entrar, também eu, nesta tertúlia de amigos e afirmar de minha justiça...
estou quase a 100% de acordo com o Manuel.
todavia, na cumplicidade de escolha de textos e respectiva publicação, não fico indiferente aos mesmos.
encontro neste texto uma força que fica aquém e além das palavras. a fuga à infância não é mais do que o grito que a emoção encontra, porque escondida, mas prestes a rebentar.
o criador ( Augusto ) joga com as suas emoções enquanto cria, para, num segundo estádio, racionalizar o sentir. há uma duplicidade não assumida, inteiramente, mas ressentida ao longo de todo o texto. O autor esconde-se na razão para não mostrar as suas emoções profundas.
mas eu sou suspeita porque gosto, em demasia, dos textos do Almirante...

é hoje, decididamente, é hoje que o Almirante me mata!
eh!eh!eh!
antevendo já uma "Morte em Silves".

Anónimo disse...

Bom, eu tinha dito que hoje não comentava, não foi, Gabriela e Mota? Mas tenho estado a ler e reler os textos e os comentários e estou encantada com o poder de um texto robusto e lúcido, tão lúcido que se intitula de "loucura". O poder de desencadear tanto interesse e tãos belos comentários. Era por isso que não queria comentar. Apreciei e concordo com os comentários da Anamar e do Manuel e subscrevo o comentário do Fernando. A discussão (no mais belo sentido) está lançada e se assim acontece é porque o texto e as ideias que contem são fortes. Só o Mota pode esclarecer as dúvidas e já o incitei a fazê-lo, mas temo que a sua lucidez o induza a ficar a observar, ouvir e meditar ... Quem é que ele vai "matar" , hoje, Gabriela ? Quem é ?
Fernanda.

Anónimo disse...

A mim, mas não me importo. "faleço" em glória, Fernanda!

Anónimo disse...

São pertinentes e sugestivos todos os comentários/especulações sobre os meus textos, passando alguns, até, para lá do que foi, para mim, o horizonte visual dos mesmos. Direi, apenas, que quase todos relevam - tanto os de "O Artifício da Loucura" como os de "A Geografia do Prazer" -, em cenários diferentes e muito distantes no tempo, de um misto de gritos automáticos de sobrevivência interior e de exaltação de uma cidade-mulher, mítica e metafórica, cujas ruas percorríamos em busca de saborosas sensações, a que, mais tarde, nos encostávamos para as reviver em palavras que vinham, sem as chamarmos, ao nosso encontro. Que cada leitor consiga emprestar a sua memória e experiência de vida à exegese dos mesmos: o prazer e a dor não são unívocos.