Quincey de pernas cruzadas ( o tornozelo de um dos pés sobre o joelho de outra perna ) estava sentado num puído sofá de couro. Estendeu a mão até ao bule chinês e deitou numa taça chá fumegante. O sabor misturou-se no pensamento. Tinha aprendido directamente o seu nome, o seu local de nascimento, a sua língua. Outros conhecimentos mais elaborados estavam, no entanto, desenhados fora da sua pele. Crescera para essa zona mal definida e identificara alguns dos postulados necessários à sua sobrevivência. Na selva tinha o andar seguro e silencioso do animal nocturno que caça as suas presas com a fortuna dos deuses. As garras reflectem um átomo gigantesco dotado de saber e instintos supremos. A mesma sensação percorria-o quando observava no ecrã profundo da noite o movimento dos astros. Seguia o rasto à procura das estrelas, à procura do alimento. O acontecimento num dos casos era perseguir a vítima para matar. No outro era partir da morte para descobrir e descodificar um princípio universal. Encheu e acendeu o cachimbo...envolto numa nuvem de fumo. As formas nunca tinham ocupado muito tempo da sua atenção. Ouvira da boca de alguém, que demandara as rotas do Oriente e se fixara no Egipto, que as viagens começam na morte e acabam no sono. Olhou pela vidraça suja e viu o cisne branco cego de um olho elevar-se e cruzar as águas do lago. Parara de chover. As palavras do viajante, meditou, tinham um significado obscuro. A acção filosófica iniciava-se na morte e terminava no sono... Ocorreu-lhe outro verbo metafísico: pensar. Se estendesse, torcesse a cabeça para o campo psicológico, facilmente, detectaria movimentos sensoriais; ver... Fechado no meio do presente, se não tivesse acesso a outros mecanismos ( crias do Olímpico Urano ) ficaria eternamente fechado no interior do círculo. Ver o quê? Ver o cisne cego? E o cisne cego vê o quê?
O interior do seu cérebro com os nervos acoplados num sistema real? Podia, bem sabia, repetir os gestos, alterar o estado mental. Na parede oposta existia um grande espelho. Quincey podia ver Quincey ( a sua imagem ) desligado da sua vontade, ensaiar pequenas imprecisões, rupturas. O tempo, no entanto, actuava como instinto, não como conceito. E o instinto é implacável na sua ordem do real. Levantou-se do sofá e saiu para a rua. Mas o que o esperava lá fora era um labirinto. Nas ruelas estreitas da casbah erra sem destino. Sombra contra sombra sob a égide dos músculos. Os seus passos caminham-no para a cidade dos mortos. Esses habitantes que se distraem a pentear os cabelos uns dos outros. Sibilam pelas gengivas sinais de ouro. Dançam ao cair da noite. ( Os mortos dançarão mesmo? Que interessa se dançam ou não, se parecem possuir um pensamento que a nossa linguagem, por mais que se desenrole, não tocará nunca. ) A espécie humana, que mais não é que uma tribo, carece de uma linguagem de ouro para interpretar os sinais eternos. O pensamento esfarrapado, que cobre com tiras uma ou outra faixa da actividade humana, encontra uma textura resistente e maleável, na cidade dos mortos. A imagem de Quincey reflectida no espelho tem, no caso da distorção, uma intensidade semelhante à oposição entre o pensamento da tribo ( estilhaço ) e o da cidade ( ordenado ). O núcleo do pensamento parece sediar-se na cidade dos mortos. O passeio de Quincey prossegue nos e nos labirintos tortuosos da casbah fumegante, queimada pelo óleo, pela menta, pelo cordeiro e pelo ópio persa. Atraído pelo cheiro entra num botequim, iluminado pela chama impalpável de uma vela. Senta-se um tamborete, obscurecido, a um canto. A chama misteriosa revela a prata difusa que, do exterior, se esbate na lâmina translúcida da porta. "Cisne Branco", assim se chama o botequim, onde indiferentemente se bebe vinho quente e menta. Pendurados na parede, dois retratos a óleo, que o proprietário afirma retratarem dois parentes seus. A palidez da chama não deixa ver muito mais, mas Quincey percebe que aquela imagem possui um rasto alienígena. Dirige-lhe ícone o pensamento - Os instrumentos utilizados pela filosofia ( raciocínios, jogos de linguagem ) operam aquém da elipse solar. O método mesmo quando transcendental, se não busca atingir o pensamento, embota os seres inteligentes. O coto fica com a alma transfigurada, a lâmina enferrujada, a chama apaga-se. Amoníaco numa folha de papel... cristais... - base do pensamento puro. Jaime Salazar Sampaio, inédito, Janeiro 2004.
( galardoado com o Grande Prémio de Teatro da APE ).
9 comentários:
Perturbante texto que se coaduna de uma forma magistarl com a fotografia que o encabeça.
Dualidade complexa e perturbadora esta - da vida e da morte... Dói.
Um prémio mais do que justo para um Autor que esmaga. É quase dolorosa esta leitura...vai muito mais além do comumente aceite.
Perturbador e perturbante.
A liniaridade desde texto está na conflitualidade do mesmo.
A busca do pensamento puro advém do conflito entre o homem e a sua imagem, o seu reflexo. O eterno jogo dos espelhos côncavos e convexos onde se reflectem as imagens dos humanos.
É impressionante o "patético" ( quase maquiavélico ) latente neste texto.
é patético o pobre cisne cego,encimando a porta de um botequim numa casbah persa.
é patética a cidade dos mortos vivos que, entre si, se penteam em anéis de um planeta qualquer.
é patético o pensamento fragmentado do homem, reflexo de si mesmo.
para no final tudo se reduzir a nada...ao pensamento mais puro...o VAZIO!
Sinto-me ínfimo perante a intricada teia deste magnífico texto.
Acutilante...
percebe-se o porquê do prémio!
Alquímico. Opinante. Denso. Terrível. Ouro. Prata. Platina.
Morto. Vivo. Sol. Lua. Astro Maior. Menor. Pensamento. Labiríntico.Insidioso.Torturante...
Egipto. A Cidade dos Mortos Vivos. Uma vez visitada, deixa na memória da alma uma mancha/mácula. Eternamente nos questiona. Com a morte inicia-se a Grande Viagem e para ela se preparavam em vida. Que viagem é essa ? Que metáfora aponta? A vida eterna? Que sono a interrompe ? Porque continua a questionar-nos ? A Cidade dos Mortos Vivos. O Egipto.
Fernanda.
e eu, como fico, face aos vossos comentários?
pequenina, ínfima.
e mais uma vez, não digo mais nada. tudo já foi dito e muito bem.
aplaudo com música.
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