21/10/2005

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR/O Homem de Ouro e a Mulher de Prata

Era uma vez um homem feito de fogo, como muitos outros homens: tinha língua de fogo, cabelos de fogo, coração de fogo, barbas de fogo. Um dia, num caminho, esse homem encontrou uma mulher de água, coisa muito natural, como ele disse, citando um poema que sabia de cor. E perguntou-lhe receoso:
- A água apaga o fogo?
A mulher de olhos de água, cabelo de água, alma de água e boca de água, e que só não tinha barba de água porque não tinha barba, respondeu:
- Depende, eu não sei apagar fogos. Sou um tipo de água a que chamam água ardente.
Olharam-se e nenhum espanto lhes veio de se olharem. Acharam natural que fossem como eram. Mas lentamente os olhos de fogo foram mergulhando nos olhos de água e cada vez mais se foram aprofundando, o que talvez tenha sido a causa do estranho fenómeno que se seguiu. Pelo contacto profundo da água com o fogo nos olhos, o lume do fogo transformou-se em ouro, e o homem passou a ter cabelos de ouro, língua de ouro, pensamentos de ouro, coração de ouro, barba de ouro, etc., e a mulher de água transformou-se em prata: cabelos de prata, língua de prata, pensamentos de prata, seios de prata.
Quanto ao resto continuaram iguais, apenas se mudaram de fogo em ouro e de água em prata. O ouro era de muitos quilates, a prata era de lei.
Como metais preciosos tornaram-se muito cobiçados, pelo que foram separados para que os olhos não mergulhassem mais nos olhos e não continuassem a transformar-se por aí fora sabe-se lá em quê... em rubis, safiras, pérolas, diamantes.
Começou então o suplício do homem de ouro. Mais do que a dor da separação era não saber em que parte do corpo localizar a saudade. Se a sentia no coração logo ela fugia para a cabeça, se a sentia na cabeça logo lhe fugia para as pernas, se a sentia nas pernas logo lhe fugia para a alma, e assim sempre.
O homem não sabia localizar a saudade e começou a perceber que a sensação em qualquer parte do corpo não era verdadeira. Na realidade a saudade não estava em sítio nenhum do corpo dele. Porque a saudade levara-a com ela a mulher. Ela, por sua vez, sentia a saudade em toda a parte ao mesmo tempo, pelo que também não sabia onde situá-la. Ela estava em todo o corpo e na alma.
Deu-se então o declínio do metal. O homem de ouro começou a empalidecer e a prata escureceu. Era a sua forma de manifestarem a tristeza por fora e por dentro. Faltava-lhes o olhar. Quem os separara começou a perceber, pelo sofrimento silencioso do ouro, que fora do olhar de água que viera o brilho do ouro e deixou-o ir. Assim partiu, o homem de ouro, seguindo as setas douradas que indicavam o caminho e que alguém lá colocara havia muito tempo, para não se perder.
Foi andando, andando, o homem de ouro a desfazer-se em fogo, até que no mesmo sítio do caminho onde se tinham cruzado antes, sonhou três sonhos em três noites.
O primeiro sonho foi com um disco dourado absolutamente luminoso e quente. Gostou do sonhar com este estranho...ser. ( assim lhe chamou por não ter nome para ele ). O sonhador acordou sentindo-se quente, luminoso e cheio de vigor. O dia foi diferente e bom, porque havia a memória da noite com o sonho dentro. Passou as horas que se seguiram a recordar o sonho da noite anterior e a antecipar o da noite seguinte. A noite fora melhor do que estavam a ser os dias e este último dia fora melhor por causa da noite. Também era bom sonhar acordado, de dia, com o sonho adormecido, da noite. Um sonho claro, quente e colorido. Mas por fora o sonhador continuava pálido. Sonhou então um segundo sonho na noite que se seguiu, com um disco prateado e fresco. Deliciosamente húmido. Temperou com esta refrescante sombra o dia, que passou recordando os dois discos: um quente e dourado, outro fresco e prateado. Na terceira noite teve um sonho vazio. Era um sonho enorme onde tudo cabia mas onde nada se via. Possuía todas as qualidades do vazio e uma qualidade suplementar, um imenso sentimento de amor que, por não caber em tão imenso sonho, o acordou. No momento em que abriu os olhos a realidade apresentou-lhe à sua frente a mulher de prata a escorrer água, quase verde e muito feia, de humidade e dor. Tanto era o sofrimento que nem conseguia olhá-lo, tinha os olhos completamente virados para dentro. Soprou-lhe ele então o fogo nos olhos para que as lágrimas secassem e os olhos se virassem para fora e pudessem vê-lo. Quando finalmente se olharam, os olhos mergulharam nos olhos e novamente se produziu o milagre da transformação em prata e em ouro. Ele fez-lhe prometer que nunca mais viraria os olhos para dentro, o que queria dizer que nunca mais deixaria de mergulhar os olhos nos dele. E não voltaram a separar-se. Mesmo quando parecia não estarem juntos. Quem quiser encontrá-los bastar-lhe-á seguir o caminho das setas amarelas. Para onde quer que elas apontem na imensa amplitude da rosa dos ventos. Quando encontrar o ouro e a prata de mãos dadas ( ou não ) irradiando um estranho brilho, pode ficar sabendo que os encontrou. Quem os encontrar terá sorte para sempre. Vale a pena meter-se ao caminho e procurá-los. O homem de ouro e a mulher de prata são vestígios, fósseis vivos, dos antepassados do sol e da lua e por eles criados em sonhos como arquétipos primordiais dos discos solar e lunar. É no sol e na lua que habitam, segundo as estações, mas quando o sonho os transporta é possível encontrá-los por aí. Maiores são as probabilidades de cada um os encontrar dentro de si. Seguindo sempre, sempre, as setas amarelas.
Risoleta Pinto Pedro, inédito, Dezembro 2003, Janeiro, 2004.
( Prémio Ferreira de Castro ).

11 comentários:

Anónimo disse...

Habilidosíssimo e frenético.
Um conto, uma metáfora.
Um sortilégio saído, de novo, da "anima" de Risoleta P. Pedro.
Magistral.

Anónimo disse...

Um texto profundo cuja leitura exige paragens e contra paragens.
Um elogio muito bem conseguido ao amor.
A necessidade, primeira, de o procurarmos em nós, para depois, o substanciarmos no outro.

Anónimo disse...

Exegético fico, assim suspenso, escravo de um desígnio intuitivo,
nesta missão de interpretar.

Porque guardarei esta cegueira abstracta no olhar?

Paradoxo dual do texto que acabo de visitar...preso da primeira à última linha.

Anónimo disse...

Tem vida própria este simbolismo, ritmado a contratempo e a compasso.

Parabéns neste fascínio perene e pelo abismo das palavras.

Anónimo disse...

Criança tola sem juízo que regressa a si e que - não vês - te acompanha, se aprofunda... e faz da leitura o seu mister...

Anónimo disse...

No ritual de um estranho paradigma, eis um sinal de fogo, a marca de uma quimera que trazes impressa de uma outra esfera...

Brilhante texto!

Anónimo disse...

como, muitas vezes tenho dito - e redigo - vou abster-me de comentar...
os comentários falam por si,
todavia,
fica o agradecimento e o beijo aos amigos e aos visitantes ( volvidos amigos ).

Anónimo disse...

Cheguei presa a um magnífico texto que não posso deixar de referir. Denso, mas literariamente muito bem conseguido.
Parabéns, Risoleta!

Anónimo disse...

Sublime!

Anónimo disse...

Fogo!
Este texto é platina.

Anónimo disse...

meus amigos, é delicioso.
é, francamente, muito bom saber que, ao publicarmos um texto, vamos ao encontro de quem nos lê.
a todos, sinceramente, muito obrigada.