31/01/2006

Legenda Íntima 99. Augusto Mota.

a geografia do prazer

A boca respira outras sensações e molda a paisagem ao ritmo da descoberta. Novos caminhos sobrevivem a tão ingente esforço e na madrugada habitam os gestos que correm e percorrem o sabor do corpo. Que novo sentido definirá esta hesitação que povoa a geografia do prazer?
Uma mulher em oferenda sagra a cidade que habito em cada gesto. Alongo e prolongo as mãos e, assim, o horizonte aproxima o ritmo de um outro poema. É Vivaldi escutado entre a memória e o presente, onde cada gesto antecipa o futuro e morre à sombra das palavras que a emoção não articula.
Outra gramática terá que definir a sintaxe das novas sensações e povoar as mãos com a recordação dos dias que vivemos em cada segundo.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.

27/01/2006

A tribute to...

Wolfgang Amadeus Mozart
Austrian Composer
1756-1791
"When I am... traveling in a carriage, or walking after a good meal, or during the night when I cannot sleep; it is on such occasions that ideas flow best and most abundantly"
-Mozart.
Wolfgang Amadeus Mozart was born on January 27, 1756, in Salzburg, Austria.
Mozart is considered one of the greastest musical geniuses of all time, authoring over 600 works before his premeture death at 35.
He excelled at nearly every kind of musical composition. He wrote 22 operas, over 40 symphonies, and composed a great amount of church chamber music. Much of Mozart's work is still performed and enjoyed today.
- Robin Chew, January 1996.

25/01/2006

Legenda Íntima 92. Augusto Mota.

Ao Amável Leitor

Os sonetos de escárnio e maldizer
Que ao longo dos meses escrevi,
Amável leitor, foram para ti
Fonte de algum riso, algum prazer.
Mas ao labor segue-se o lazer,
E ao pedido da musa acedi:
Farto de clamar, fico por aqui -
Voltarei em breve, bem podes crer.
Até lá, no quintal de minha casa,
Vou voar com a vespertina asa
Duma andorinha, esquecendo esta insânia*.
Se não conseguir assim quietude,
É natural que por uns tempos mude
Para um perdido bosque da Tasmânia.
A. Inocêncio Príncipe, inédito, Janeiro, 2006.
* que por toda a parte se manifesta.

24/01/2006

Reflexão Eleitoral

"Que encravacado se veja quem encavacado se deseja"
- sabedoria popular.
Depois de dois dias de reflexão pós eleitoral, e,
nada alegre com o que assisti, no domingo à noite,
nas televisões portuguesas,
instrumentalizadas,
subservientes
e
bajuladoras do poder,
permito-me relevar,
porque assaz oportunas,
as Palavras
de Pedro Barroso
em
"O Sentido das Coisas".


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gabriela rocha martins.

22/01/2006

Legenda Íntima 28. Augusto Mota.

"estamos sós com aquilo que amamos"

é o vigésimo segundo dia do mês de Janeiro. "esse ponto exacto à volta do qual tudo oscila, testemunha do balanço entre a noite de um inverno exterior e a aurora de uma primavera interior".
o dia cai. a noite antecipa-se.
é o 22º dia do mês de Janeiro. o rito. a celebração da arte, na Arte...
salut! ao alto da gávea. a um palácio de palavras grés.
divagamos...
sabemo-nos presos a um corpo, presos à matéria, e, recusamos aceitar ser esse o local da nossa morte. um corpo, afinal, nada mais é do que um fim que se elabora num erro. então, só podemos aspirar aos objectos que tenham o estatuto de pensamento. mas, também neste caso, os objectos tornam-se insuportáveis, na medida em que o corpo, como objecto criador do pensamento, também é insuportável. e, é esta deficiência técnica que, para os cépticos, como eu, faz surgir a estranheza e o medo da morte.
todavia, tudo isto é um erro. um erro crasso.
primeiro, porque na dicotomia objecto/corpo, objecto/pensamento, há, apenas, uma verdade insofismável - cada um, ao nascer, transporta, em si, um cadáver.
segundo, porque há que aprender os limites da ideia. há que saber os limites da linguagem. há que saber ser nos limites da linguagem e da matéria. saber, ainda, calcular a distância entre a matéria e o pensamento, entre a nossa vontade perceptiva e o estado real do objecto, porque a mesma pode resultar da fuga do objecto.
este deixa de ser para querer ser.
então, os objectos podem deixar de existir. existe sim a esperança do objecto que especifica a fuga e a ausência, e esta é a forma de consciencializar uma afeição.
todavia, a falta do objecto nunca nos faz aproximar dele, porque realmente o que amamos é a ausência, a deslocação, a esperança do objecto. "estamos sós com aquilo que amamos" - escreveu Friedrich Novalis.
julgo imperioso cultivar o espaço bruto se quisermos, de facto, escrever o Poema final.
deambulamos num espaço, literalmente, vazio, no espaço que fica entre corpos e ideias, nomes e/ou objectos. mas, como preencher esse vazio?
um Poeta, por exemplo, sobe as montanhas da Palavra e aí, entre o dia e a noite, julga-se um fugitivo, sem saber que nunca sai do mesmo lugar. deseja ser um grito e ter asas de ouro. mergulha a fronte suave nas mãos geladas e deixa o corpo cair. sonha. procura na terra negra uma flor azul. sabe da escuridão e do frio que enchem esse vazio.
então, e só então, cumpre-se na Ausência.
gabriela rocha martins.
Legenda Íntima 20. Augusto Mota.

sua beleza



autor desconhecido
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21/01/2006

5. La Comtesse d'Or

Veste a condessa ouro de cem quilates:
O chapéu e o vestido, com finura,
Ganham a cor que envolve os chocolates
Que Ambrósio em suas mãos segura.
Como se fossem o Tigre e o Eufrates,
Dois rios d'ouro sobre o colo pendura;
Mas esse colar cantado p'los vates,
Perde beleza prà sua formosura.
E da voz dourada de inflexões,
Sua finesse jorra em borbotões,
Quando pra falar surge o ensejo.
"Apetece-me algo," diz, divina;
Logo Ambrósio, como se imagina,
Pronto lhe satisfaz qualquer desejo.
A. Inocêncio Príncipe, inédito, 2005.

20/01/2006

Legenda Íntima 90. Augusto Mota.

4. Senhora, Apetece-me Algo

E agora troquemos os papéis;
É a Ambrósio que algo apetece:
"Nobre Senhora, quero que me deis
Essa cruz que sobre os seios desce."
"Não posso, amigo, pertenceu a reis,
Herdei-a de minha mãe la comtesse
De Martignon, mas porque não quereis
Algo mais prosaico, que eu pudesse
Dar-te sem rebuço, como esses
Ferrero-Rocher que tão bem conheces,
Sem que dê azo a ditos e dislates."
Ele, com fome d'amor e comida,
Sabe que o amor é breve e curta a vida,
E come la comtesse e os chocolates.
A. Inocêncio Príncipe, inédito, 2005.

3. Apetece-me Algo

"Ambrósio, apetece-me algo",
Seja o que for, o Ambrósio traz.
TGV, um mero comboio Talgo,
Água-de-colónia ou aguarrás.
"Ambrósio, apetece-me algo",
e ele o pedido satisfaz:
um golden-retriever, um simples galgo,
Chocolate sabendo a sassafrás.
E a nobre dama que come a esta hora
O seu Ferrero, sorri, mas não cora
Perante os olhares que Ambrósio lhe deita.
Esta cena, de um rigor demente,
Fala de um falso mundo, falsa gente,
E é maleficamente perfeita.
A. Inocêncio Príncipe, inédito, 2005.
Legenda Íntima 88. Augusto Mota.

2. Bravo, Ambrósio!

O seu rosto embigodado e róseo,
A maneira como anda e como fala,
Enche d'admiração toda a sala
Que ouve e vê televisivo Ambrósio.
"O País está em farrapos, ele cose-o,"
O Povo pensa e não mais se cala;
Por vales e montes a gente abala,
A gritar: "Bravo, Ambrósio! Bravo, Ambrósio!
E pelo País perpassa, ardente:
"Queremos Ambrósio pra Presidente,
Que em vez do Ferrero nos dê pão."
E se ele casar com a nobre dama,
Aninhados os dois na mesma cama,
Mais sólida vai ficar a nação.
A. Inocêncio Príncipe, inédito, 2005.

Ambrosianas

1. Ambrósio, Candidato
Há nesta terra um homem singular,
De porte majestoso, afável rosto,
Sempre disponível e bem disposto,
Em tudo o que diz e faz exemplar.
Pede a dama algo, e sem tardar,
Ambrósio, o pedido satisfaz com gosto;
E o Ferrero-Rocher, stock reposto,
Surge por magia ao nosso olhar.
Se o que lhe pedem é sempre satisfeito,
Se em tudo o que faz ele é perfeito,
Que seja presidente do País.
E quando o povo tiver escolhido,
Fará, confiante, este pedido:
"Ambrósio, apetece-me ser feliz."
A. Inocêncio Príncipe, inédito, 2005.

17/01/2006

Castelo de Silves.
Fotografia de M. Moreira.
1.
algm ultra passou os limites
da d ecência
a carta de condão
i
o
f
.
a
p
r
e
e
n
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d
a
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gabriela rocha martins.
Castelo de Silves
Fotografia de António B. Oliveira

Moura Encantada

Vem Moura do meu imaginário,
traz um beijo suave como um sopro
perpassando no rendilhado
da chaminé caiada
ou no alto das açoteias.
Traz contos de encantar
falas de outras eras
cantando
mouras e sereias.

Vem Moura, o tempo não passou. Vem.

Glória Maria Marreiros, in "Algarve, A Gente e o Mar".

14/01/2006

Legenda Íntima 85. Augusto Mota.

I cry

cantado por Yüri Chika.
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Fotopoema 47. Augusto Mota.

Descocacolizando

É bebida que não bebo e abomino,
Essa mais que duvidosa beberragem;
Mais parece água suja de barragem
Que corrói estômagos e intestino;
Que excita o velho e o menino
E empesta o ar e a doce aragem;
E os que a bebem, esses, não reagem,
E vão-na emborcando de contino.
Aproveitai a água, enquanto dura,
Há fontes onde ainda escorre pura,
Procurai-as, lavai-vos dessa Coca.
Limpai-vos bem de corpo e de alma,
Com a água que refresca, acalma,
E ficareis a ganhar com a troca.
A. Inocêncio Príncipe, inédito.
desenho a borrona de António Ramos Rosa. inédito.

Poema com desenhos de António Ramos Rosa

Os olhos, os traços soltos em carícias leves,
murmuram o mundo, a sua dança, o seu clamor,
os seus aromas festivos,
e a lua, em seu rosto levíssimo flutua,
porque o sol é o astro, que em seu silêncio levita.
Na extremidade das flores, onde um veludo
precioso dormita,
a vida é o anoitecer deslumbrado.
Nos olhos de um Poeta, a dança do mundo,
os seus desenhos festivos acariciam a luz,
os seus bailados.
Nos jardins do seu nome, as palavras
resplandecem.
Nos ramos do silêncio, um pássaro pousou,
ainda há pouco,
nas praias obscuras, em suas fúlgidas areias,
o Poeta, em seus olhos de silêncio se banhou,
inebriado de canto e púrpura
e os seus traços, acompanhando os acordes
misteriosos, reinventaram os ritmos,
a criação,

sobre membranas fluidas,
recamadas de vida.
Maria do Sameiro Barroso, in, "António Ramos Rosa, Fotobiografia", 2005.

13/01/2006

brevíssima ...

Ilse Losa
faleceu no passado dia 6 de Janeiro.
De origem judaico-alemã ( nascida em Hanôver em 1913 ) Ilse Losa, para fugir das perseguições nazis, refugiou-se em Portugal, na cidade do Porto.
Em 1984, foi galardoada com o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura Infantil.

semi breve ...

Auto Retrato de Rembrandt. 1640.
Comemora-se, este ano, o IV Centenário do nascimento do pintor holandês, Rembrandt Hermans van Rijn ( do Reno ) tido como a própria personificação do espírito barroco.

breve ...

Paul Verlaine.
Há 110 anos, falecia, no dia 8 de Janeiro, em Paris, o poeta francês Paul Marie Verlaine, mais conhecido por Paul Verlaine.

12/01/2006

de velours et de soie


Serge Reggiani
chante Boris Vian.
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11/01/2006

Legenda Íntima 59. Augusto Mota.

a estrela de alva

A ânsia da espera desbarata as emoções e não deixa viver o tempo presente que tanto amparámos entre sonhos e vigílias. A saudade do que se imaginou inventa novos pretextos para admirar a paisagem que renasce sobre o corpo da memória e a carícia das mãos.
O silêncio junta os olhares deitados sobre a planície onde outrora cavalos selvagens corriam em direcção ao mar e à liberdade. Hoje pouco se avista para além do cansaço e das intenções que desaguam nas palavras apenas murmuradas.
É Inverno, já. Sabe bem, por isso, encostar as sensações à aragem fria da tarde e esquecer o tempo que despimos das obrigações da quadra festiva. A festa, agora, é a dos sentidos que percorrem a geografia do corpo e traçam novos itinerários para a descoberta do princípio da vida. Se é a alma que procuramos, ela poderá estar na ponta dos dedos e na palma da mão onde, em tempo de sonho e júbilo, já cresceram estrelas.
Agora é nos olhos que queremos a estrela de alva, para com ela avivar e avisar a memória de tudo quanto iludiu o espaço da viagem e das emoções.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.
Legenda Íntima 26. Augusto Mota.

As WMD*

As armas de destruição maciça
'scondem-se no cozido alentejano:
No foguetão vermelho da linguiça,
Pronto a produzir o maior dano;
Nas granadas dos grãos que a guerra atiça,
No explosivo feijão, que eu irmano
Ao TNT, ocultas da cobiça
De quem as procura ano a ano.
Enquanto chafurdáveis no Iraque,
Com grande, mediático destaque,
Sem nada encontrardes, pelo que vejo,
Cretiníssimos senhores do mundo,
Não procureis mais longe nem mais fundo:
Elas estão aqui no Alentejo.
A. Inocêncio Príncipe, inédito.
*As muito procuradas e nunca encontradas Weapons of Mass Destruction ( WMD ), armas de destruição maciça.

10/01/2006

uma flor de mil pétalas...


... ou o sortilégio do Oriente!
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08/01/2006

A Flor de Mil Pétalas*

Abres a porta à procura da luz -
Um galo canta no cimo da hora,
E tu estremeces e agitas as sombras,
E a luz foge para longe.
Abres a porta à procura do nada:
Um rato rói a alma por dentro,
E tu estremeces e agitas o vento -
E o nada foge para dentro de ti.
Abres-te para o verde cantante das searas:
uma cobra rasteja por entre os caules,
E estremeces de novo,
E a água foge da tua sede -
É então que ao pé da luz,
A sombra se casa com a água,
E a seara cresce desmedidamente,
E os deuses riem dos gestos dos homens,
Confusos demais para abrirem caminhos -
Contudo, sem que eles o saibam,
Lá no fundo da sua alma,
Num recanto obscuro da mente,
Uma pequena flor começa a ganhar raiz -
Ela vai crescer para todos os lados
E atravessar o mundo e o próprio universo:
E homens e deuses e pássaros e pedras
E árvores e asas e campos e casas
E pontes e portas, senhores e servos,
E tudo o que mexe e o que fica imóvel,
E tudo o que fala e tudo o que cala
São as pétalas infinitas dessa flor.
António Simões, inédito. Évora.
*Escrito entre a vigília e o sonho, numa tarde mágica de 9 de Fevereiro de 2002, nos campos de Louredo.

03/01/2006

Legenda Íntima 86. Augusto Mota.

Ó pedra que estás parada

Ó pedra que estás parada,
Onde estão tuas raízes?
Mas ficas sempre calada,
Ó pedra, e nada me dizes.
Porque não voas então?
Que te impede de voar?
Se fosses meu coração,
Voavas solta no ar,
Como voa o pensamento
Que vai para onde quer.
Fosses tu irmã do vento,
Serias minha mulher -
E eu casava contigo
Fazia o que sempre quis,
Como amante, como amigo:
Ser para sempre feliz
Na solidez do teu corpo -
Ser um a soma dos dois,
Habitar-te como um todo,
( As asas vinham depois ).
Com a minha fantasia,
Teríamos aéreo lar -
A gente depois vivia
Só do sonho de voar.
António Simões, inédito, 2001. ( Do ciclo "poemas com pedras dentro" ).
Fotografia de Gottfried Helnwein.

Tributo a um Amigo / até sempre Carlos

"...Cumpri a acção de descer os quinze degraus para as trevas e a acção de ascender os degraus para a luz. O sacrifício renova-me, rejeitando a densa natureza do meu corpo. Assim consagrado pela necessidade, tornei-me espírito...".
recordei esta passagem de Zózimo de Panópolis - papa do séc. V - hoje, quando soube do falecimento de Carlos Cáceres Monteiro, meu colega de Faculdade e AMIGO de longa data.
o seu desaparecimento levou-me a alguns momentos, íntimos, de reflexão sobre a complexa dualidade vida/morte.
terça-feira, terceiro dia de um novo mês e ano. não falarei do jovem com quem estudei, nem do jornalista com quem convivi, durante anos.
todavia, na génese deste meu pesar, retenho o companheiro, dou-lhe a mão, e penso, em voz alta, no Amigo. um beijo, Carlos... e desculpa se insisto no discurso indirecto.
será que o Acaso ( ou seja, a Morte ) existe?
se se pensar no processo vida, a relação desta com a morte, concebida como Acaso, é extremamente complexa. quando tal afirmo, reporto-me ao facto do comportamento humano só se tornar significativo se não se reproduzir com uma frequência e um mimetismo tais que o torna tipificado, o que não constitui, de todo, o comportamento humano dito normal.
na nossa educação, só a tendência é determinante. o pormenor, em caso algum, pode ser predito. daí as contradições e as divergências que, no entanto, não devemos recusar.
logo, o Acaso existe.
mas, se pensarmos que a selecção e a evolução, assim como o aparecimento do ser vivo, são processos que têm lugar segundo leis determinadas, a evolução não é mais do que um processo de aprendizagem natural, cujos pressupostos possuem, apenas, valores gerais. do mesmo modo, a nossa liberdade de agir fundamenta-se, por um lado, numa combinação de leis, onde a nossa vontade se encontra indissociada do mecanismo biológico, constituindo o binómio "corpo/espírito". por outro lado, se se considerar que a vontade ao contrariar todo o processo que se desenrola no nosso Eu biológico, tem um efeito libertador do mesmo, há que concluir que todos somos, simultaneamente, seres condicionados e condicionantes.
o Eu, ou seja, a personalidade de cada indivíduo, não é uma instância independente deste mecanismo. pelo contrário, manifesta-se nele, é-lhe íntimo e idêntico.
logo, o Acaso ( ou seja, a Morte ) existe.
ainda não há muitos dias, num diferente registo, escrevi que a morte exige-nos uma instintiva alegria de viver. exige-nos, ainda, o estar presente sem nada sacrificar. o estar presente sem nada recusar.
todavia, a morte também é, para todo o ser humano, a única certeza, razão porque, ao falar sobre a sua inevitabilidade, mais não faço do que exorcisá-la, e, acrescento - ao relembrar o Amigo - a necessidade de se saber viver intensamente em alegria, porque esta é a única verdade.
ao procurar fazê-lo, e, recordando Cáceres Monteiro, repito Zózimo de Panópolis
"...Cumpri a acção de descer os quinze degraus para as trevas e a acção de ascender os degraus para a luz. O sacrifício renova-me, rejeitando a densa natureza do meu corpo. Assim, consagrado pela necessidade, tornei-me espírito...".
até sempre, Carlos...
gabriela rocha martins.

01/01/2006

Legenda Íntima 87. Augusto Mota.

janeiro é o primeiro mês

o ano principia. janeiro é o primeiro mês.
é altura de esboçarmos novos contornos, de deitarmos contas à vida. de dizermos - "ano novo, vida nova".
todavia, mau grado as boas intenções, os dias começam a repisar-se nos roteiros iguais das cidades, ao repetirmos, diariamente, os mesmos gestos. é urgente reinventar a Poesia.
prometemos a nós mesmos, novas leituras, novas "escritas". as palavras e os livros principiam a habitar-nos. no princípio era o Verbo...
ocupam-nos, então, outros personagens, os seus enredos, as suas imagens. enchemo-nos no espírito dos livros. e a ficção repete-se. os incidentes, os lugares, as estações, o acaso do primeiro ou do último encontro, o simulacro de cada um de nós. repetimo-nos, porém. é a rotina. o cansaço na repetição dos mesmos gestos. o desinteresse. há que reinventar a Palavra e escrever um outro ( ou porque não? ) o mesmo Poema.
estamos sitiados, devassados, naufragados na voragem dos simulacros. criamos ilhas de vontades. estabelecemos ligações, unidades de sentidos, narrativas existenciais, e, procuramos elaborar a arte de não representar. antes, uma forma criativa de viver. um estilo. uma nova escrita. uma outra ficção.
há quem, como eu, se demore em bibliotecas públicas, pessoais, privadas, arquivos, livrarias. o documento e o livro são a minha profissão. fazem-me, simultaneamente, senhora de..., leitora de... estou atenta, mas gosto, sobremaneira, do desinteressado abandono de uma obra, esquecida em qualquer prateleira. fazem do leitor ( aliás, é esse o seu objectivo ) um aventureiro errante - como afirmava Umberto Eco - que procura, em cada estante, uma nova aventura, sem saber se a encontrará ou sequer se a terá encontrado se acaso a encontrar.
gosto de imaginar comunidades, unidas na narrativa implícita do livro.
permite-me ficcionar sociedades ideais, redes de cumplicidades, encontros, paixões, nostalgias movendo corpos e vontades. há que reinventar a Palavra ( e, neste caso ) reescrever o Poema.
o "estar com" e o "estar em" são uma respiração de sinais no "coração" do caos. uma travessia do real, uma passagem ao imaginário. ser é integrar o enigma da linguagem. ler o da comunicação. razão porque, um dia, afirmei que escrever mais não é do uma forma imperfeita de ler, talvés mesmo, o seu excesso.
todavia, entre o ser e o ler há um equilíbrio radical. há que torná-lo real, invernalmente, na Poesia.
gabriela rocha martins, inédito.