19/07/2006

A Caneta Azul ( conto )

A caneta azul ansiava, mais que nunca, pela chegada do fim do Verão. Tornara-se insuportável a transpiração daquela mão gorda que a apertava e forçava contra os papéis, desbotando-a para escrever ninharias. É certo que há canetas com vidas muito distintas e afortunadas. Chegando algumas, inclusive, a escever versos que perduram; poemas admiráveis. Que mesmo não sendo muito elegantes nem finos do ponto de vista estético, são eficazes. Infelizmente, não era este o caso.
Naquelas latitudes, o Verão era longo e desidratante. A economia da região despontava com a chegada dos numerosos turistas vindos do exterior. Assim, adições, multiplicações e subtracções, normas contabilísticas, assinaturas de cheques e ordens de pagamento a fornecedores, ocupavam a maior parte da sua existência.
Durante os seis meses que durava a estação balnear, a caneta ficava deitada no aparador ao lado da secretária quase todo o dia sem fazer nada. Para depois das onze da noite, naquela sala estreita e mal iluminada, desatar metamáticas para o papel com vista aos lucros da odorífera mão transpirada que a submetia às suas ordens.
Não sabia onde nascera, nem se recordava do local onde tinha sido adquirida. Lembrava-se muito bem, isso sim, das suas primeiras palavras: Secretária: 362.
Para quem almejava um dia escrever um romance, ou mesmo um pequeno conto, anotar apenas, para além de números cíclicos, dia sim, dia não, recados de supermercado como: cem gramas de fiambre, pensos higiénicos, iogurtes naturais, cotonetes, cervejas e algumas cebolas - era manifestamente pouco e redutor.
Por isso a caneta desesperava. Chegou mesmo a desejar em certas horas de intolerável angústia que a sua tinta se esgotasse antes do tempo. Ou que alguém mal-intencionado - porque sempre os há -assaltasse o escritório e, num reflexo inato, a levasse sem querer, juntamente com os lucros que se encontravam no cofre fixado na parede, sessenta centímetros acima da sua tampa.
Mas nada disto aconteceu. Findou o Verão e veio o Outono; depois o Inverno, a Primavera e novamente o Verão. O seu sortilégio continuou, bem como a mão inchada que lhe coube. Com o decorrer dos anos, lentamente, como a árvore que envelhece, a caneta deixou de acreditar e sonhar que algum dia seria capaz de escrever um texto minimamente ambicioso. Também os números e as equações, a pouco e pouco, começaram a rarear. Em períodos de longo celibato chegou mesmo a desejá-los escrever ardentemente como se de versos se tratassem: poesia numérica.
Uma manhã, uma mão estrangeira pegou-lhe. Já há muito tempo que a caneta não era usada, nem para números nem para costeletas de porco. A tinta - ou o que ainda restava dela - praticamente secara na sua totalidade. Mas esta mão nova que lhe pegava, elegante e ágil, era obstinada. E depois de premir, de arranhar com força, várias vezes, a sua boca contra a superfície lisa da folha, uma réstia de sangue azul que lhe sobrava, pingou, e ela pode então, finalmente, escrever um texto digno desse nome:
"Faleceu Tomás W.
Sua esposa, filhos, genros e demais família cumprem o doloroso dever de participar o seu falecimento, e que o funeral se realiza amanhã, sábado, pelas 11 horas, no cemitério grande desta cidade"
Sandro W. Junqueiro, inédito.

2 comentários:

Anónimo disse...

A força do escritor que regressa do fim do silêncio.
Bem haja, Sandro!
E para quando um novo romance?

Anónimo disse...

pois é ,Ritinha .a essa pergunta só o Sandro poderá responder ...

um beijinho!