para o Orlando Cardoso
Do mirante vimos o revérbero do calor bater nas fragas abruptas do outro lado do desfiladeiro.
Mas olhar para o fundo da garganta, ver a ribeira de Alge a saltar pequenas cachoeiras e a correr por entre a ramaria de árvores frondosas antecipou-nos a frescura das suas águas e o conforto da sombra de tanto amieiro ( Alnus glutinosa ), de tanto carvalho ( Quercus faginea ), de tanto freixo ( Fraxinus angustifolium ), de tanto loureiro ( Laurus nobilis ). E descer lá abaixo, depois de tanto calor, foi descer a uma outra realidade, onde um subtil jogo de luz e sombras parecia criar uma ilustração tridimensional de um bocado do paraíso, com a água a correr por entre penedos e manchas de claridade projectadas por um sol da tarde, coado pela folhagem viva e agradecida daquela floresta primeva. Como numa catedral havia o silêncio respeitoso das pessoas a quererem gozar a sua paz e a paz dos outros. Só as levadas que outrora deram força às engrenagens das azenhas pareciam querer impor a música diluída da sua corrente, apressada em retomar o curso da ribeira.
Apetecia mergulhar os pés e as mãos naquela água límpida e caminhar, caminhar por aquele líquido silêncio, até encontrar o resto do paraíso, ou, então, adormecer bem no meio da ribeira, em cima de um penedo arredondado e batido pelo sol para, como uma sereia, divagar pelos caminhos encantados das mãos, dos olhos e das palavras. Construiríamos a noite em pleno dia e saudaríamos a vontade de ver as árvores florescerem milhares de estrelas. Estrelas para iluminarem o rasto das palavras que vamos deixando atrás de nós, como indício de uma peregrinação a caminho de nada e de tudo. Talvez até construíssemos uma jangada que nos levasse a outros continentes, perdidos entre a memória e os dias claros.
Se aportássemos ao litoral da memória, em dia bem claro, iríamos, por certo, a uma azenha trocar grão para, depois, espoar muito bem a farinha e fazer pão fino que alimentasse o sonho e o passado. Do farelo tenderíamos alimento para os cães que estivessem de guarda ao nosso sossego, ou nos ajudassem a pescar alguma truta ( Salmo trutta ) mais distraída. De varas de eucalipto ( Eucalyptus globulus ) faríamos uma ponte de aventura suspensa sobre os dias escuros, já que do outro lado há sempre lugar para novas esperanças. Ou, então, atravessaríamos a ribeira a vau, se a corrente não fosse muito forte e não houvesse o perigo de sermos arrastados para as margens longínquas do passado. Uma vez do lado de lá regressaríamos à realidade de uma tarde quente de domimgo.
Do mirante vimos o reverbéro da emoção ao bater nas fragas abruptas do outro lado da memória.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Composições de Augusto Mota sobre poemas de António Simões.