Despir os sentimentos é aquecer o corpo junto ao fogo que se vê arder no lar das emoções. É, ainda, repousar os olhos nas estrelas que iluminam os caminhos do universo e desenham a trajectória dos gestos. É, também, ver como as palavras ficam a meio caminho dos desejos e o silêncio incendeia a música que as mãos dedilham nas cordas de uma harpa celta, de onde os sons brotam como água fresca de uma nascente entre seixos lisos e arredondados. É, sobretudo, acariciar o corpo e os sentidos à luz ténue das achas que ardem na fogueira da noite. As mãos! Sempre as mãos viveram à frente das palavras e hoje regressaram ao futuro, ao encontro das lendas mágicas que animam os tesouros escondidos da infância e dos dias passados entre o corpo e a memória. Ou entre o corpo da memória. Ou entre a memória do corpo. Dessa memória que vemos alimentar o desejo das mãos, ou o rosto dos dias, e que atravessa entre nós e a noite, assim adiando o sono e os percursos do corpo. Percorremos o corpo desenhando, com os apuros da técnica, os traços de uma tapeçaria que há-de expor-se ao museu dos sentimentos, que hoje despimos à luz da fogueira. Por isso derramámos cores várias e quentes pelos espaços brancos e livres, compondo uma sinfonia de formas e tons que a melodia da harpa harmonizava ainda mais. E os gestos saíam precisos e preciosos. E a obra ia ganhando a dimensão do nosso desejo, até sair dos limites apertados do tear electrónico onde os fios da teia e da urdidura se foram transformando nas distantes constelações que habitam lá para os lados da Estrela Polar. Ainda programámos a máquina com novas latitudes e longitudes, mas já não conseguimos reaver as linhas mestras da obra que fomos compondo ao longo da noite. Apenas vivem em nós as cores e os sons que animarão o museu de todos os sentimentos. Todas as noites de céu estrelado havemos de olhar o infinito em busca das constelações que hoje desenhámos no universo das emoções.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Composição de Augusto Mota sobre poema de Fernando Miguel Bernardes.
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