19/08/2007

a ribeira das fragas

para o Orlando Cardoso
Do mirante vimos o revérbero do calor bater nas fragas abruptas do outro lado do desfiladeiro.
Mas olhar para o fundo da garganta, ver a ribeira de Alge a saltar pequenas cachoeiras e a correr por entre a ramaria de árvores frondosas antecipou-nos a frescura das suas águas e o conforto da sombra de tanto amieiro ( Alnus glutinosa ), de tanto carvalho ( Quercus faginea ), de tanto freixo ( Fraxinus angustifolium ), de tanto loureiro ( Laurus nobilis ). E descer lá abaixo, depois de tanto calor, foi descer a uma outra realidade, onde um subtil jogo de luz e sombras parecia criar uma ilustração tridimensional de um bocado do paraíso, com a água a correr por entre penedos e manchas de claridade projectadas por um sol da tarde, coado pela folhagem viva e agradecida daquela floresta primeva. Como numa catedral havia o silêncio respeitoso das pessoas a quererem gozar a sua paz e a paz dos outros. Só as levadas que outrora deram força às engrenagens das azenhas pareciam querer impor a música diluída da sua corrente, apressada em retomar o curso da ribeira.
Apetecia mergulhar os pés e as mãos naquela água límpida e caminhar, caminhar por aquele líquido silêncio, até encontrar o resto do paraíso, ou, então, adormecer bem no meio da ribeira, em cima de um penedo arredondado e batido pelo sol para, como uma sereia, divagar pelos caminhos encantados das mãos, dos olhos e das palavras. Construiríamos a noite em pleno dia e saudaríamos a vontade de ver as árvores florescerem milhares de estrelas. Estrelas para iluminarem o rasto das palavras que vamos deixando atrás de nós, como indício de uma peregrinação a caminho de nada e de tudo. Talvez até construíssemos uma jangada que nos levasse a outros continentes, perdidos entre a memória e os dias claros.
Se aportássemos ao litoral da memória, em dia bem claro, iríamos, por certo, a uma azenha trocar grão para, depois, espoar muito bem a farinha e fazer pão fino que alimentasse o sonho e o passado. Do farelo tenderíamos alimento para os cães que estivessem de guarda ao nosso sossego, ou nos ajudassem a pescar alguma truta ( Salmo trutta ) mais distraída. De varas de eucalipto ( Eucalyptus globulus ) faríamos uma ponte de aventura suspensa sobre os dias escuros, já que do outro lado há sempre lugar para novas esperanças. Ou, então, atravessaríamos a ribeira a vau, se a corrente não fosse muito forte e não houvesse o perigo de sermos arrastados para as margens longínquas do passado. Uma vez do lado de lá regressaríamos à realidade de uma tarde quente de domimgo.
Do mirante vimos o reverbéro da emoção ao bater nas fragas abruptas do outro lado da memória.

Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Composições de Augusto Mota sobre poemas de António Simões.

5 comentários:

Anónimo disse...

« Apetecia mergulhar os pés e as mãos naquela água límpida e caminhar, caminhar por aquele líquido silêncio, até encontrar o resto do paraíso, ou, então, adormecer bem no meio da ribeira, em cima de um penedo arredondado e batido pelo sol para, como uma sereia, divagar pelos caminhos encantados das mãos, dos olhos e das palavras. Construiríamos a noite em pleno dia e saudaríamos a vontade de ver as árvores florescerem milhares de estrelas. Estrelas para iluminarem o rasto das palavras que vamos deixando atrás de nós, como indício de uma peregrinação a caminho de nada e de tudo. Talvez até construíssemos uma jangada que nos levasse a outros continentes, perdidos entre a memória e os dias claros. »

Como a água, calma e silenciosa ou em perpétuo movimento, consegue amenizar as tempestades interiores formadas pela escuridão da memória, concedendo-lhes a graça da sua limpidez e frescura. Estará na água o princípio de tudo, mesmo que o tudo já não seja nada ?
Belo texto e bem sentido.

Belas as quadras "de amassar" de António Simões e as suas ilustrações.

Abraços.

Anónimo disse...

A mão amassa o pão
mostra as palmas
nuas, crentes
descobem-se nelas
vincos da memória
limpos e tansparentes.

Belos textos, belas imagens !
Até amanhã1

Anónimo disse...

A mão amassa o pão
mostra as palmas
nuas, crentes
descobem-se nelas
vincos da memória
limpos e tansparentes.

Belos textos, belas imagens !
Até amanhã1

Anónimo disse...

O pão que satisfaz o espírito deve ser amassado num líquido silêncio, pois já no ventre materno é a água que nos leveda, ou bem, ou mal, para o resto da vida.
Portanto, Fernanda, a água está, mesmo, no princípio de tudo, embora, quando a Natureza se revolta, possa significar destruição e não criação. Mas aqui, no meio de uma natureza, ao mesmo tempo sossegada e selvagem, que me "fez criar" este texto ao relembrar a límpida frescura do ambiente, ampliada pela verde folhagem do arvoredo espelhada em águas tão calmas, parece que a memória quis amassar - não com mãos anónimas e nuas - as vincadas vivências de uma vida, para, com tal alimento, decorado coma as papoilas rubras das searas que povoam as quadras do António Simões, podermos saciar a fome de uma certa marítima distância, quando espraiamos a vista do cimo dos tais "penedos da saudade" que, de vez em quando, vamos erguendo na orla do nosso mar interior.
Por má interpretação da carta de marear, talvez porque o oceano estivesse demasiado agitado e não permitisse que o compasso do marinheiro de serviço medisse com exactidão as latitudes e longitudes, não acompanhou este texto a «Legenda Íntima 50», como estava lá assinalado, cuja temática era afim, já que a foto da Ribeira de Alge que a motivou, daria uma orientação preciosa a quem se perdesse na aventura daquelas palavras, que oscilaram entre a realidade e a travessia a vau das metáforas ocasionais.
Para os interessados em ver-ler tal «Legenda», aqui fica o endereço do arquivo deste blogue onde a poderão encontrar:
http://palaciodasvarandas.blogspot.com/2005_11_01_archive.html

Se desejarem ter uma ideia mais completa das Fragas de S. Simão e da Ribeira de Alge, poderão consultar o álbum ontem publicado no meu blogue «Pilriteiro», em:
http://augustomota.multiply.com/photos/album/188 , podendo ler o mesmo texto num corpo de letra muito maior, e menos cansativo, em HOME, ou BLOG. Clicando nas fotos do álbum para as ampliar individualmente, em algumas há informções específicas sobre o motivo em causa.
Saudações ecológico-literárias para todos!

António Simões ,Augusto Mota e Gabriela Rocha Martins disse...

parece que houve revolta na Nau ... segundo refere o Almirante ... mas a este responde o grumete de serviço em diário de bordo

um abraço meus Amigos!