guichê 3
Dum cutelo-guichê sem higiafone
senti o frio na nuca e, por broma, imaginei-me na nuca de Antonieta
(referência cultural como qualquer outra).
Dar o pescoço e nem por aférese perder a cabeça
não é para todos quando nos burocratas.
Das doze e trinta às catorze e trinta
estive garrotado e encimado por um letreiro: ENCERRADO.
Estiquei a língua para um frasco de cola,
mas só a mosca dos tinteiros nele arriscava duas das patas.
Meditei (que fazer?) a gasta superfície do balcão
e, português derrotado, pensei:
«Onde veio parar a madeira das naus!»
O tempo demorava a passar como aquela estúpida reflexão
e eu, de grossa língua seca, sentia as ardências todas
do nauta que tragou meia barrica de sardinha.
Das mãos fiz passarinhos cegos contra o vidro,
baquetas ruflando a minha impaciência,
aranhas passeando o que me restava de pescoço.
«Vou pôr-me todo nos olhos, que os olhos salvam!»
e pela ponte pênsil dum olhar passei para o relógio,
que adiantei meia discreta hora.
Do mostrador alcancei uma flor num copo.
Com ela devaneei numa lapela imaginária,
mas o passeio não deu para mais nada.
Tocou a campainha e um contínuo entrou.
«Que faz aqui o senhor? O expediente ainda está encerrado!»,
praguejou o contínuo e, dando meia volta,
correu a chamar o general dos contínuos.
Este veio. Passou-me revista. Não se dignou falar-me.
Ainda hoje gostava de saber porquê.
Às catorze e trinta (três pela minha hora)
uma funcionária aproximou-se do guichê,
levantou o cutelo que me sujeitava,
retirou o letreiro e (até amável!) perguntou-me:
"O senhor o que deseja?"
E era, à beira-guichê, como se não tivesse acontecido nada!
Alexandre O’Neill, in "Tomai lá do O’Neill!",
Lisboa, Círculo de Leitores, 1986
A Bicicleta
O meu marido
saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.
in: "As horas já de números vestidas", 1981
A Força do Hálito
A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.
Vai (ou vem) um sujeito, abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.
Sovacos pompeando vinagres e bafios,
não são nada --bah...-- em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.
"Ai onde transpira agora
o bom sovaco de outrora!"
Virilhas colaborando com parentesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito) maravirilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos, nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.
Mas o mau hálito é pior que a palavra
sobretudo se não for da tua lavra.
Da malvada, da cárie ou, meudeus, do infinito,
o mau hálito é sempre, na narina,
como o baudelaireano, desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria.
A leitura
(brechtiana)
Não te deixes enrolar!
És tu quem tem de pagar...
Põe o dedo em cada letra.
Pergunta:-Por que estáqui?
_____________________________________
algumas notas biobibliográficas:
senti o frio na nuca e, por broma, imaginei-me na nuca de Antonieta
(referência cultural como qualquer outra).
Dar o pescoço e nem por aférese perder a cabeça
não é para todos quando nos burocratas.
Das doze e trinta às catorze e trinta
estive garrotado e encimado por um letreiro: ENCERRADO.
Estiquei a língua para um frasco de cola,
mas só a mosca dos tinteiros nele arriscava duas das patas.
Meditei (que fazer?) a gasta superfície do balcão
e, português derrotado, pensei:
«Onde veio parar a madeira das naus!»
O tempo demorava a passar como aquela estúpida reflexão
e eu, de grossa língua seca, sentia as ardências todas
do nauta que tragou meia barrica de sardinha.
Das mãos fiz passarinhos cegos contra o vidro,
baquetas ruflando a minha impaciência,
aranhas passeando o que me restava de pescoço.
«Vou pôr-me todo nos olhos, que os olhos salvam!»
e pela ponte pênsil dum olhar passei para o relógio,
que adiantei meia discreta hora.
Do mostrador alcancei uma flor num copo.
Com ela devaneei numa lapela imaginária,
mas o passeio não deu para mais nada.
Tocou a campainha e um contínuo entrou.
«Que faz aqui o senhor? O expediente ainda está encerrado!»,
praguejou o contínuo e, dando meia volta,
correu a chamar o general dos contínuos.
Este veio. Passou-me revista. Não se dignou falar-me.
Ainda hoje gostava de saber porquê.
Às catorze e trinta (três pela minha hora)
uma funcionária aproximou-se do guichê,
levantou o cutelo que me sujeitava,
retirou o letreiro e (até amável!) perguntou-me:
"O senhor o que deseja?"
E era, à beira-guichê, como se não tivesse acontecido nada!
Alexandre O’Neill, in "Tomai lá do O’Neill!",
Lisboa, Círculo de Leitores, 1986
A Bicicleta
O meu marido
saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.
in: "As horas já de números vestidas", 1981
A Força do Hálito
A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.
Vai (ou vem) um sujeito, abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.
Sovacos pompeando vinagres e bafios,
não são nada --bah...-- em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.
"Ai onde transpira agora
o bom sovaco de outrora!"
Virilhas colaborando com parentesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito) maravirilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos, nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.
Mas o mau hálito é pior que a palavra
sobretudo se não for da tua lavra.
Da malvada, da cárie ou, meudeus, do infinito,
o mau hálito é sempre, na narina,
como o baudelaireano, desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria.
A leitura
(brechtiana)
Não te deixes enrolar!
És tu quem tem de pagar...
Põe o dedo em cada letra.
Pergunta:-Por que estáqui?
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algumas notas biobibliográficas:
Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões nasceu em Lisboa em 1924.
Em 1948, juntamente com Mário Cesariny, António Pedro, Vespeiro e José Augusto França, lança-se na aventura do surrealismo, fruto de uma época, e, que surgia como provocação ao regime político vigente e à poesia neo realista. Em 1950, porém, O'Neill abandona o Movimento Surrealista, manifestando, desta maneira, o seu desagrado pelo rumo simulado e decadente em que o surrealismo mergulhara. O poeta nunca foi de arrigementar-se e o surrealismo obrigava a uma certa disciplina ideológica.
A sua poesia mantém, no entanto, traços surrealistas.
Colabora com " Os Dissidentes " numa exposição.
À semelhança de muitos artistas portugueses, não pôde ser, apenas, poeta. Costumava afirmar que "vivia de versos e sobrevivia da publicidade" e esta foi a maneira mais fácil de ganhar a vida, numa área que requeria destreza e à vontade com as palavras, campo em que o Poeta sentia-se como peixe na água.
O'Neill não criou nenhum vínculo afectivo com a sua profissão. Idealizou algumas frases publicitárias que ficaram na memória, como o slogan, tornado provérbio, "Há mar e mar, há ir e voltar", mas, a publicidade que lhe deu conforto económico, não lhe deu estabilidade, porque, sempre que se aborrecia, mudava de patrão e agência publicitária!
O seu currículo é vasto e diversificado, onde constam colaborações em jornais, revistas e televisão.
A pátria foi o seu tema preferido, e, a crítica o pincel com que pintou paisagens, gestos e costumes quotidianos.
"Transbordante de sonhos, sedento de realidades submersas, foi em vida e é em morte, incompreendido e votado ao esquecimento. Esse terá sido o preço que pagou por ter.se recusado a aderir ao populismo fácil." ( Truca ).
Faleceu em 1986.
Bibliografia
"A Ampola Miraculosa", Cadernos Surrealistas, 1948
"Tempo de Fantasmas", Cadernos de Poesia, Lisboa, 1951
"No Reino da Dinamarca", Guimarães, Lisboa, 1958
"Abandono Vigiado", Guimarães, Lisboa,1960
"Poemas com Endereço", Morais, Lisboa, 1962
"Feira Cabisbaixa", Ulisseia, Lisboa, 1965
"Portogallo mio rimorso", Einaudi, Torino, 1966
"De Ombro na Ombreira", Dom Quixote, Lisboa, 1969
"As Andorinhas não têm Restaurante", Dom Quixote, Lisboa, 1970
"Jovens, Nova Fronteira", Futura, Lisboa, 1971
"Entre a Cortina e a Vidraça", Estúdios Cor, Lisboa, 1972
"A Saca de Orelhas", Sá da Costa, Lisboa, 1979
"As Horas já de Números Vestidas", 1981
"Dezanove Poemas", 1983
"Uma Coisa em Forma de Assim", Presença, Lisboa, 1985
2 comentários:
Sempre Bem-Vindo, A O'Neill! Obrigada! e Parabéns pelo Regresso deste Belo Blogue! :-) mt
obrigada ,Mtezinha.......como o O'Neil és aquela máquina ( interpreta como quiseres )
um beijo de todos nós
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