JOANA e JOAQUINA SIMÕES
e AS TESOURAS DE VENTO
«Como é possível recortar-se o papel desta maneira?», perguntam-se todos os que contemplam os seus trabalhos, perplexos perante uma maestria na fronteira do inacreditável. «Com que mágicas tesouras, a um tempo rígidas e maleáveis, trabalham as duas irmãs?» À laia de uma tentativa de resposta a estas perguntas, aqui vos deixo uma pequena fábula:
Joana e Joaquina estavam um dia à janela de sua casa de Pavia. Era a hora abafada do suão em que se dorme à sombra das árvores ou na frescura dos quartos interiores. Era a hora a que o vento sopra mais quente e que, tal como o ferro, se torna mais leve e maleável e insinua a sua língua de fogo pelas frinchas das portas e janelas e das almas desprevenidas.
Do livro «A ARTE DO PAPEL RECORTADO EM PORTUGAL», Colares Editora, 1999, reproduzimos o elogio que a prefaciadora Maria Proença faz a estas duas senhoras, onde transcreve a quase totalidade do poético texto que António Simões escreveu para o catálogo da exposição que realizaram em Évora, em 1987. Omitiremos, por redundante, toda essa parte que assinalamos com (...):
"É particularmente interessante o trabalho que ainda hoje desenvolvem em Pavia duas irmãs, Joana e Joaquina Simões, senhoras já octogenárias, mas que, depois de terem passado uma vida inteira a ensinar, se dedicaram, depois de reformadas, à arte de recortar o papel. É que, como explicam, esta arte reclama muita disponibilidade de tempo e tranquilidade de espírito. (...)
Sobre papel recortam as mais imaginativas figuras onde nascem pássaros, flores, vasos, monogramas e outros desenhos de perfil filigranado, que aplicam sobre fundos mais escuros de molduras. A esta arte chamam alguns arte do papel "enamorado" e inscrevem-na na mais vasta rubrica das "artes do coração" ".
Joana e Joaquina estavam um dia à janela de sua casa de Pavia. Era a hora abafada do suão em que se dorme à sombra das árvores ou na frescura dos quartos interiores. Era a hora a que o vento sopra mais quente e que, tal como o ferro, se torna mais leve e maleável e insinua a sua língua de fogo pelas frinchas das portas e janelas e das almas desprevenidas.
Há já algum tempo que o vinham tentando apanhar. Mas ele, o vento, esgueirava-se sempre e fugia a bufar como um gato. Naquela tarde, porém, estavam confiantes. «Hoje é que vai ser», pensava cada uma delas, enquanto armava a ratoeira habitual: uma rede tecida com os olhares de ternura com que observam o mundo, esticada entre as pálpebras bem abertas e o infinito. Só que, e permitam-me que abra aqui um parêntesis, nessa tarde, sem que nenhuma o suspeitasse, Manuel Ribeiro, artista também e como elas filho de Pavia, há já algum tempo habitante dos mundos invisíveis, estava a dar uma ajudinha lá do outro lado, mantendo a rede sempre bem esticada. Fosse por causa da inesperada ajuda, ou porque o vento tivesse, de repente, afrouxado de intensidade, o que é certo é que conseguiram dobrar-lhe a rede rede por cima e aprisioná-lo. Triunfantes, cada uma o leva então, fumegante e em brasa ainda, para a bigorna de sua alma. É lá que o batem e estendem, alisam e afiam, até ficar mais fino do que um cabelo humano, mais cortante que uma ponta de diamante. Com esse metal aéreo e leve, extraído do corpo quente do suão, fabricam então as tesouras com que recortam no papel essas veredas finíssimas por onde nossas almas caminham extasiadas, arrepiadas até à vertigem, tontas de tão delicada beleza suspensa sobre o abismo do fundo escuro do quadro. É no meio desses labirintos de papel filigranado que minha alma gosta de sonhar que adormece, só para acordar dentro do sonho, envolvida pelo perfume de flores campestres, pelo canto dos pássaros e pelo sussurrar macio de asas de borboletas cegantes de brancura.
Ah, não peçam as tesouras emprestadas à Joana e à Joaquina Simões, para tentarem recriar uma aventura estética que é única e inimitável, que elas não poderão satisfazer o vosso pedido. Tais mágicas tesouras é só no instante da criação artística que se tornam visíveis, manusáveis, numa palavra, existem. Depois, desaparecem, esgueiram-se por alguma frincha do postigo, ou da alma, tal como faz habitualmente o vento suão que elas conseguiram agarrar, há algum tempo, numa tarde de verão.
ANTÓNIO SIMÕES, Estremoz, Junho de 1987
in Catálogo da Exposição realizada no Palácio de D.Manuel, Évora, Junho de 1987.
Obs.: A assinatura das autoras no trabalho acima reproduzido também é recortada em papel.
in Catálogo da Exposição realizada no Palácio de D.Manuel, Évora, Junho de 1987.
Obs.: A assinatura das autoras no trabalho acima reproduzido também é recortada em papel.
Do livro «A ARTE DO PAPEL RECORTADO EM PORTUGAL», Colares Editora, 1999, reproduzimos o elogio que a prefaciadora Maria Proença faz a estas duas senhoras, onde transcreve a quase totalidade do poético texto que António Simões escreveu para o catálogo da exposição que realizaram em Évora, em 1987. Omitiremos, por redundante, toda essa parte que assinalamos com (...):
"É particularmente interessante o trabalho que ainda hoje desenvolvem em Pavia duas irmãs, Joana e Joaquina Simões, senhoras já octogenárias, mas que, depois de terem passado uma vida inteira a ensinar, se dedicaram, depois de reformadas, à arte de recortar o papel. É que, como explicam, esta arte reclama muita disponibilidade de tempo e tranquilidade de espírito. (...)
Joana e Joaquina Simões
editado por augusto mota
2 comentários:
Lindo,lindo!
Vi nos Açores uma pequena amostra desta arte e fiquei encantada.
Um abraço
Rosa
As mãos mágicas movendo as tesouras de vento.
Uma maravilha!
Júlia
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