30/10/2005

Azul

Vivia feliz na oficina de meu tio abegão,
vendo-o esculpir, pacientemente, com a enxó,
na rija madeira de azinho, os raios das rodas dos carros,
com a leveza com que o vento afaga as searas;
às vezes, nas tardes de oiro de Verão,
de regresso das lonjuras das planícies do Alentejo,
aparecia um homem num cavalo branco,
que parava em frente da porta
à conversa com o meu tio;
o infinito vinha preso às patas, às rédeas e à crina do cavalo
e ao sussurro cantante da fala do cavaleiro -
quando se iam embora os dois, deixavam atrás de si
um pouco do azul desse céu
que alagava o chão da oficina coberto de maravalhas de azinho
e ia subindo até ficarmos todos -
meu tio e eu e o senhor Carvalho, o ajudante -
a nadar em grandes braçadas nesse azul do espaço;
quando minha tia abria a porta dos fundos
que dava para a oficina,
o azul entrava-lhe pela casa dentro,
e nessa noite a ceia tinha um sabor diferente,
porque, sem ela saber, era com a água do infinito
que se coziam agora os grãos com abóbora no lume de chão
que ardia na maciez dum solo de violoncelo;
quando no fim da tarde eu regressava a casa,
minha mãe, desprevenida,
afogava-se, invariavelmente, no azul de meus olhos castanhos;
se procurarem bem,vê-la-ão ainda, sorridente,
lá bem no fundo da memória,
azulada de ternura -
António Simões, inédito, Louredo, Évora, Março de 1999.

6 comentários:

Anónimo disse...

É esta comevedora poesia quente, sabendo ao dourado das espigas alentejanas que admiro em António Simões.

Porque nunca me canso de descobri-lo e lê-lo?

Anónimo disse...

E mais uma vez a paz inunda-me, quando o encontro aqui, ao anoitecer.

Anónimo disse...

Um choque muito bem aproveitado entre duas sensibilidades poéticas - o masculino alentejano;
o feminino algarvio.

Crú!

Anónimo disse...

Uma feliz-azul infância.
Um indissolúvel elo que o liga à mãe-terra-mãe.

Anónimo disse...

Que ternura na magia do infinito azul que mora dentro de todos nós! A ternura da escrita de António Simões. Gosto. Francamente.

Fernanda.

Anónimo disse...

quem não gosta do contra-Almirante ( por mim - ignorante em coisas de marinhar - despromovido ou promovido a vice-Almirante ) António Simões, quem?