19/10/2005

carta de hiroxima

Escrevo-vos de Hiroxima onde sou correspondente de guerra. Do ar caem ainda corpos aos bocados, como se fosse um avião subversivo a lançar panfletos sobre a cidade. Mas que triste esta propaganda feita de carne e ossos! Pior ainda são os gritos dos cadáveres carbonizados na alegria de amantes, na tristeza de casais sem filhos ao pé e no desespero de poetas fuzilados enquanto previam a catástrofe. Depois falem-me de paz!... Há sempre assassínio onde quer que o façamos. Por isso nem aceitemos desculpas de fé! Quando se mata, morre-se em vida, tragicamente, agonizando nos anos lentos que nos vão acompanhar sem remissão para a nossa consciência. Talvez os outros tenham sempre razão. É fácil ter razão quando se aduzem circunstâncias a maior parte das vezes inacessíveis à nossa ética, ao nosso esforço poético para compreender todo o macabro da vida deturpada a favor de outras razões.
Hoje, aqui, em Hiroxima, recuso-me a aceitar. Recuso-me a transgredir no meu sangue. Posso ser outro amanhã, mas hoje recuso-me. Tomemos, hoje mesmo, todas as atitudes do universo. Escrevamos atitudes em cartas às nossas amantes desconhecidas. Escrevamos aos nossos pais e acusemo-los de não nos terem ensinado que a vida, afinal, era isto. Escrevamos ao nosso médico de família e censuremo-lo por nos ter deixado viver quando um dia nos salvou de doença grave. Escrevamos ao nosso professor de instrução primária e digamos-lhe como eram estreitos os seus conceitos de deus, de pátria e de família. Escrevamos, depois, ao nosso amigo catequista que, então, nos mostrou uma estampa da criação do mundo, e avisemo-lo de que a nossa sensibilidade de criança, hoje, terá de recusar o mistério da fé se ele permitir esta barbaridade ( eu sei, no entanto, que ele está comigo ).
Cheira horrivelmente a sangue neste inferno carbonizado. Ouvem-se gritos de meninos sem pernas, de mães removendo destroços fumegantes em busca dos filhos que andavam na escola, de maridos loucos tentando encontrar a esposa na casa que já não existe.
A boca sabe-nos a fumo e as mãos tremem-nos ao saber que, verdadeiramente, já não há crianças, nem poetas. Só miséria paira aqui como flagelo de peste duradoira. Só a morte pode sobreviver a esta hecatombe, aquela morte súbita que se esconde em cada gesto humano como pária traiçoeiro, aquela morte que cada um de nós serve e alimenta como verme intestino, para expelir, despropositadamente, como se fora atraiçoado por preconceitos e ideologias que não aceita.
Sim, a morte vagueia por Hiroxima e diverte-se com o fogo que alastra de bairro para bairro. O próprio tempo interrompeu-se, como que para negar o futuro a esta cidade desprevenida na catástrofe. Alguns homens teimam em buscar vida nos passeios arrancados e nas calçadas esbraseadas. As chamas continuam violentas sobre os restos de casas aterrorizadas, de janelas esgazeadas, de portas esfomeadas, por onde saem cadáveres ainda agarrados a velhas recordações da vida de outrora.
A guerra atraiçoou, sobretudo, a vida destes inocentes que morreram com flores nas mãos quando brincavam às batalhas entre os canteiros do jardim público. Nem tão pouco o guarda os soube avisar do perigo que corriam! Nem mesmo os adolescentes, que se amavam num banco próximo, adivinharam a catástrofe! Quando acordaram já só puderam abraçar-se para sempre...
Agora, vinte e quatro horas depois da catástrofe, só fumo paira nesta cidade. É sempre assim. Os homens continuam a ser poetas na guerra. Ultrapassam-se, mas aniquilam-se...
Augusto Mota, inédito, in"Metáfora,"1962.

8 comentários:

Anónimo disse...

Sublime este texto...
Parabéns, Augusto Mota, aquele que diariamente ainda me surpreende.

Com este texto Augusto está para além da compreensão da maioria das pessoas.

Anónimo disse...

Belíssimo texto.
Uma mão cheia de beijos e flores para si.

Anónimo disse...

Há muito que não lia um texto tão bom, mas, ao mesmo tempo tão cruel.
Nú de teorias e preconceitos.

Anónimo disse...

Como é bom passar por aqui e encontrar as suas palavras, mesmo cruéis!!!!

Anónimo disse...

De hoje em diante fica decretado - é proibido compreender.

É demais intrigante, inesperado e forte este texto de Augusto Mota.

Magnífico.

Anónimo disse...

O espanto!

Anónimo disse...

Tanto tempo guardado este texto, porquê, Mota ? É SEMPRE actual. O dia em que o impensável aconteceu e o Mundo nunca mais foi o mesmo . Mas é necessário não o esquecer ... Ainda bem que foi escrito e publicado.
Fernanda.

Anónimo disse...

a actualidade dilacerante.
obrigada, Amigos.
1 bj.