19/10/2005

Passados uns minutos. Não se sabe ao certo quantos. ( Quando se desperta, nunca se tem a exacta noção de quanto tempo se esteve esquecido. ) Os olhos do pequeno voltaram, e encontraram a mãe adormecida, deitada a seu lado.
O quarto cheirava a mofo. As persianas estavam corridas. E a boca fina da mãe soprava-lhe ao ouvido uma melodia familiar; um fio estreito de baba corria-lhe dos lábios, abrindo um caminho de sulcos pegajosos pela pele.
Cuidadosamente, ele ergueu ligeiramente o pescoço, e a morna e doce aragem chegou até si: a mãe respirava. E ele respirava ouvindo a mãe respirar. Não se dando conta sequer que respirava, e que respirar era aquilo: o peito em quilha a subir e a descer, a descer e a subir; ao vagar do diafragma, ao arranco do sangue, à segurança das veias, ao vento dos pulmões.
A mãe respirava. Era isso. Mais: reparou que o seu seio bom que, fortuitamente, num daqueles movimentos sonâmbulos do sono, se lhe tinha escapado do cárcere do soutien, pendia agora, grande e imenso, na sua direcção. Na direcção da sua boca.
Um mamilo castanho e gretado, inclinava-se para ele. Voraz como que à espera da fome. Sedento como que à espera da sede. E era aquele, reconhecia-o, aquele mesmo, o mamilo esquerdo que a ele antes lhe tinha servido como fonte primária de nutrientes. Embora não gostasse de leite, uma força estranha impeliu-o na mesma em direcção ao seio da mãe. E não foi o avivar da memória sobre aquilo que um dia fora seu que lhe impulsionou a vontade, mas antes, o acordar de um desejo irrepetível. Mas quando a sua boca mínima se aprestava para tocar no bico castanho de carne, tossiu involuntariamente e o corpo da mãe deu de si, antecedendo o minuto do despertar.
O pequeno fechou os olhos e endureceu, como sempre fazia quando pressentia o perigo, fingindo que dormia para sempre. E assim ficou, quieto - pedra no coração - sentindo aquele volume quente pulsar ir de encontro aos seus lábios, mas consciente da descoberta e que, desde aquela hora, entre ele e a mãe, morte alguma, jamais, venceria.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No céu não há limões".

5 comentários:

Anónimo disse...

Há muito que não te lia...

Anónimo disse...

Como é quente e bom encontrar-te, Sandro!

Anónimo disse...

Subtil a ironia deste texto.

Anónimo disse...

A respiração suspensa...de infinito prazer!

Anónimo disse...

um novo encontro.
que mais?