16/10/2005

uvas-do-monte

para a Susana Santos

O Sol, como um bolo, parte-se e reparte-se pelos convivas de um doméstico festim de palavras. A quem daremos a melhor parte? Às mãos, por certo, pois são elas que partem e repartem a exacta porção de luz dourada que inunda os olhos, enquanto o ló, como fina espuma dos dias, escorre por entre os dedos e invade os braços, a caminho de todas as memórias do corpo.

Secreta vigilância esta que domina os dias, como quem espera pelo desespero! Que outras palavras avançaremos para delimitar a razão de tão parco existir?

As palavras, como os bolos, estão recheadas de memórias e de sabores que usamos a esmo nestas receitas culinárias muito pessoais, pois não respeitamos nem pesos, nem medidas. Tudo é muito bem batido em tacho de cobre, com colher de madeira, para depois ir ao forno, de onde, por vezes, sai ainda bem quente para servir, de imediato, como sobremesa no banquete das palavras. Estas, mergulhadas na infância dos dias que passámos a esquecê-las, impõem-se-nos como uma gulosa fatia de pão-de-ló recheado de mirtilos ( Vaccinium myrtillus ) e, assim, é difícil não as usar em nosso próprio proveito.

Elas, as palavras, percorrem a nossa paisagem interior de norte a sul, de leste a oeste, para contentamento dos pontos cardeais da nossa imaginação, que navega sempre à bolina, até ancorar numa baía de águas claras e baixas onde possamos refrescar as mãos e os olhos. E só depois, satisfeitos e mais rejuvenescidos, poderemos voltar a adormecer sobre as gratas recordações desta doce culinária do sentido íntimo das palavras.

As palavras escritas são, a certas horas, o único alimento para as mãos que gostariam bem mais de estar a saborear o apelo irrecusável de um punhado de violáceas e sumarentas uvas-do-monte, ou mirtilos.

Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

6 comentários:

Anónimo disse...

Resisti ao impeto de imediato comentar o primeiro ( ou segundo por ordem de publicação ) texto de Augusto Mota. Resisti porque há neste multifacetado autor uma dicotomia que vai para lá dum texto. E mesmo nele, como no presente caso, Augusto afirma-se num linguagem que ronda - apenas ronda - os autores neo-realistas para, na descrição, fugir para um surrealismo que apenas se pressente.
Autor sem escolas ou movimentos dá, a cada texto seu, uma força que só um leitor atento descortina.
Obrigado pelo belíssimo texto, Augusto Mota.

Anónimo disse...

Cheira a mosto este cantar de Augusto.

Anónimo disse...

Susanas somos todos nós... os que vagueiam pelas palavras com que cobre esta folha de espanto.

Anónimo disse...

de tão belos, não comento...simplesmente...agradeço pelo Autor.

Anónimo disse...

todavia, o seu a seu dono...José Artur.

Anónimo disse...

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