26/06/2007

Marés

Vêm as marés de água indefinida,
vê-se a chegada a borbulhar
só a areia estremece
quando frágeis no mundo
compreendemos o que vêm trazer,
o que querem levar.
Nossos passos só se desfazem
para cá e para lá,
olhamos para o longe
nossa fragilidade a palpitar.
Soletramos água,
soletramos sol
e deixamos a tábua no mar.


José Ribeiro Marto, inédito, in "A celebração dos dias".
Textos transversais de Augusto Mota.



19/06/2007

retorno ... i return ... je retour

como a ave que adormece
entre as mãos ausentes do poeta
retorno ao húmus da terra
exangue
para continuar
humana
entre as pedras e as árvores
densas
da barbárie
as the bird that sleep
between the absent hands of the poet

I return to humus of the land

without blood

to continue
human being
between the rocks and the trees

dense

of the barbarity

comme l'oiseau qui s'endort
entre les mains absentes du poète

je retour à la humus de la terre

exangue

pour continuer
humaine
entre les roches et les arbres

denses

de la barbarie

Gabriela Rocha Martins ,inédito ,Imprimatvr ,2007
Fotopoema de Augusto Mota.

17/06/2007

R


O coveiro subiu os três degraus e pisou a soleira.
Os cabelos longos e negros da morta cresciam ainda, alimentados pelos ossos, varrendo o chão de todas as impurezas que lhe insultavam o andar.
Com a morta nos braços, o coveiro abriu o mais que conseguiu os seus grandes olhos amarelos infectados. E quando, finalmente, a deitou sobre o lado virgem da cama, e cobriu metade da sua morte com um lençol velho e amarrotado, disse para si mesmo:
- Não posso coçá-los; tenho comichão mas não posso coçá-los; se os coçar posso perdê-los.
Ainda vestido e calçado, o coveiro deitou-se a seu lado. Os seios da morta, gelados e duros, relampejavam no escuro como duas laranjas cobertas de geada. Virando-se para ela, o coveiro afagou-lhe os cabelos com a ponta dos dedos. Aproximou o seu nariz mal treinado para odores mais íntimos a uma das suas axilas recém-barbeadas. E foi nesse preciso instante que uma sensação já esquecida e apressada começou a possuir-lhe todo o corpo: ela estava nua, deitada a seu lado; coberta de geada; mas ao contrário, o sangue do coveiro, fervente, revolto e espesso, mostrava-se vivo e confluia todo num trânsito desordenado, a uma só voz, em direcção à mesma artéria, para inflamar o mesmo músculo. Com uma enorme erecção dentro das calças, o coveiro constatou para si mesmo:
-É isto afinal o mundo.
( continua na letra S )

Sandro William Junqueiro, inédito, in "Diário do Algoz".
Fotografias de Augusto Mota.

15/06/2007

Perceval

Perceval
não percebe,
na incessante aventura,
que ele é o próprio Graal
que procura -
O sonho que persegue,
trá-lo dentro de si -
e quanto mais longe
o projecta,
mais perto fica a meta,
o lá é logo ali -
A busca do Graal
é o despir definitivo
do último disfarce:
buscando,
vai buscar-se.

António Simões, poemas inéditos, 1990.
Composições de Augusto Mota sobre poema de António Simões e citação de Gabriela Rocha Martins.

14/06/2007

O tempo esqueceu-se

No jardim da minha Avó, havia sol azul e perfume de laranjeira.
E éramos meninos a brincar.
No jardim da minha Avó, havia o murmúrio embalador da fonte
escorrendo água e aroma verde de Lúcia-lima.
E éramos jovens a sonhar.
Os sonhos subiram colinas, atravessaram rios nas planícies...
No jardim da minha Avó espera a agridoce malva rosa na sombra fresca da tarde.
Por onde se perdem as nossas ausências?
No jardim da minha Avó, há o absurdo do silêncio esquecido.



Fernanda Sal Monteiro in matebarco , 13.06.2007
Composições de Augusto Mota sobre poemas de António Simões e Cristina Coroa.

12/06/2007

o cio do sol


Enquanto lavro o corpo da manhã o Sol, em cio, cavalga um cão de fogo por entre nuvens afiladas e a construção de cidades adivinhadas. Bem perto, porém, há o rodopiar incessante do disco rubro que agora se estampa em nosso olhar. Vemo-lo para além das nuvens. Vemo-lo em cima e para além deste corpo que se adelgaça no esforço de transportar o astro-rei a caminho de outras galáxias bem mais perto de nós.
Rítmica é a sensação do sexo em desepero perante a ingenuidade artesanal do olhar, firmeza da mão, o gravar da matéria.
Assim se constroem as nossas cidades interiores, que ora são corpo de mulher, ora vielas estreitas por onde vagueamos a tristeza e as mãos vazias de tudo.
As colinas ao longe agridem o espaço como justo contraponto a este paroxismo de dor e de prazer.
Deixemos as coisas acontecer ao ritmo do tempo que tomou conta do nosso acaso.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Fotopoemas - Composições de Augusto Mota. Poemas de Carlos Alberto Silva.

10/06/2007

No Dia de Camões e de Portugal

Camões e a tença
Irás ao paço. Irás pedir que a tença
seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce.
Em tua perdição se conjuraram
calúnias desamor inveja ardente
e sempre os inimigos sobejaram
a quem ousou mais ser que a outra gente.
E aqueles que invocaste não te viram
porque estavam curvados dobrados
pela paciência cuja mão de cinza
tinha apagado os olhos do seu rosto.
Irás ao paço irás pacientemente
pois não te pedem canto mas paciência.
Este país te mata lentamente.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Imagens compostas por Augusto Mota, a partir de textos seus e de António Simões

nota - o poema de Sophia Andresen foi-nos enviado por Amélia Pais

06/06/2007

breviário .2

13 .jura.
"És o sol da minha vida, a luz do
meu caminho" - repetia vezes sem
conta. Um dia houve um eclipse
total do astro-rei e a paixão perdeu-
se para sempre no labirinto da
realidade.
Texto de Augusto Mota, in "Sujeito Indeterminado", 2005.
Legenda Íntima de Augusto Mota.

03/06/2007

Vida de Cão

Mas, amanhã, cá estaremos de volta... Se o vento estiver de feição!