O coveiro subiu os três degraus e pisou a soleira. Os cabelos longos e negros da morta cresciam ainda, alimentados pelos ossos, varrendo o chão de todas as impurezas que lhe insultavam o andar.
Com a morta nos braços, o coveiro abriu o mais que conseguiu os seus grandes olhos amarelos infectados. E quando, finalmente, a deitou sobre o lado virgem da cama, e cobriu metade da sua morte com um lençol velho e amarrotado, disse para si mesmo:
- Não posso coçá-los; tenho comichão mas não posso coçá-los; se os coçar posso perdê-los.
Ainda vestido e calçado, o coveiro deitou-se a seu lado. Os seios da morta, gelados e duros, relampejavam no escuro como duas laranjas cobertas de geada. Virando-se para ela, o coveiro afagou-lhe os cabelos com a ponta dos dedos. Aproximou o seu nariz mal treinado para odores mais íntimos a uma das suas axilas recém-barbeadas. E foi nesse preciso instante que uma sensação já esquecida e apressada começou a possuir-lhe todo o corpo: ela estava nua, deitada a seu lado; coberta de geada; mas ao contrário, o sangue do coveiro, fervente, revolto e espesso, mostrava-se vivo e confluia todo num trânsito desordenado, a uma só voz, em direcção à mesma artéria, para inflamar o mesmo músculo. Com uma enorme erecção dentro das calças, o coveiro constatou para si mesmo:
-É isto afinal o mundo. ( continua na letra S )
Sandro William Junqueiro, inédito, in "Diário do Algoz".
Fotografias de Augusto Mota.