19/12/2013

Rosário Breve




Nem o palhaço se lembrou desta da avó e da bezerra





Perto de minha casa, num vasto terreiro ermo que só os ventos de marítima origem usam franquear, acampou agora, por e para um mês, um circo. A tristeza do costume: espécie em lona de acampamento funâmbulo-cigano, é presídio de animais tristes e condenados à prisão perpétua sem qualquer culpa formada, tugúrio de artistas tisnados dourando a cárie da gargalhada postiça sem riso dentro e castiçal de bandeirolas virente-rubras tipo Euro-2004 com o mesmo resultado (da) final.
Aderindo aos maus tempos d’agora, todo o santo dia aquele pagode de pano encardido e desbotado ladra stum-stuns de bárbara cacofonia de discoteca equivalentes a descomunais arritmias cardíacas que sobressaltam a passarada num raio de dez milhas terrestres e me inviabilizam, pelo menos até 6 de Janeiro próximo, o passeio beira-fluvial do dia (que para mim é às seis da manhã, Inverno ou Verão, que começa).
Não se trata, todo este ror de repugnâncias minhas, de ter alguma coisa contra a esfarrapada nação circense. Trata-se tão-só de nada ter a favor dela, por mais que tente. Poucas coisas nesta vida me são tão instantaneamente deprimentes quão os circos. De menino que assaz me fazem mal à pituitária lírica. Na cidade marítima onde veraneávamos (sim, tempos houve já em que as famílias operárias também veraneavam – e nem era muito longe dos ricos frequentadores do casino, do ténis-clube, do hipódromo de contraplacado, do chá-dançante e das casadas com os oficiais da capitania), dizia-Vos eu então que, na cidade marítima onde veraneávamos, o circo era fatal como a morte da avó (ou da bezerra, no caso dá o mesmo).
Reparai: tenho cinco anos e recordo, como se agora fosse, as jaulas inçadas de ímpias moscas atormentando os leões mais magros, mais famélicos e mais tristes do mundo; o patriarcal elefante padecendo a insuportável humilhação do exílio e com ar de quem sonha ainda poder um dia deixar correr, ou morrer, o marfim ao mesmo campo-santo de seus livres antepassados indiano-africanos; o ar de barbeiro pelado dos chimpanzés, tão parecidos sempre com os nossos primos da Beira Alta; a lustral gordura alvinitente da gentil senhorita assistente do atirador de facas; o palhaço sem pingo de graça mas muita pinga de bagaço e de cachaça; a mulher-às-vezes-aranha-às-vezes-das-barbas lavando e pondo a estiolar ao vento marinho suas ceroulas museológicas e suas cartas de um amor antigo que se recusa a secar; o fadista internacional que nunca passou nem a norte da Mealhada, nem a sul de Portel, nem a disco gravado, a Oeste como a Leste; a arrogância toleirona do Director de Arena, esse patusco dos bigodes retorcidos em parêntesis para sussurro da frase em linha dos lábios e sempre com aquela casaca de granadeiro napoleónico que não tirava nem para tomar o banho que nunca tomou; e o lixo que cada fim de época balnear aquela malta abandonava ao dissabor eólico da praia cercana.
Por não ter eu salvaguardado ainda, ou já, o dinheiro q.b. para ir habitar o deserto, levo com o circo à porta. Isso me fez, antes de enviá-la em definitivo ao jornal, telefonar esta crónica a um Amigo a quem também os circos deprimem sem remédio. Ele fez muito que sim logo às primeiras instâncias respiratórias do primeiro parágrafo. Também ele redesceu logo a menino, logo de novo assistindo, como se agora fosse, àquilo a que pelas aldeias chamavam “comédias”: famílias andrajosas que, queimadas do frio e do mau hábito da fome, pandeiretavam e símio-realejavam por as eiras e os fontanários das paróquias as últimas maravilhas de uma ilusão que há muito deixara, já então, de ser a primeira.
E agora isto: acontecer-me que a escrita desta crónica acabasse por me cabisbaixar o brio – como se tivesse ido ao circo. Ou como se, havendo finalmente logrado adormecer, adormecido sonhasse com o leão liberto, liberto de homens e de moscas e de verões não africanos que nunca voltam a ser o de 1969, esse outra vez livre e forte rei fazendo rugir a altífona goela à aparição da gentil senhorita, também ela farta, e liberta finalmente ela também, do sacanita que lhe atirava facas.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», de 19 de Dezembro de 2013


 

 Ilustrações: Arte Postal / desenhos de Pedro Frazão, 1962

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