Nem o palhaço se lembrou desta da avó e da bezerra
Perto de minha casa, num vasto
terreiro ermo que só os ventos de marítima origem usam franquear, acampou
agora, por e para um mês, um circo. A tristeza do costume: espécie em lona de
acampamento funâmbulo-cigano, é presídio de animais tristes e condenados à
prisão perpétua sem qualquer culpa formada, tugúrio de artistas tisnados
dourando a cárie da gargalhada postiça sem riso dentro e castiçal de
bandeirolas virente-rubras tipo Euro-2004 com o mesmo resultado (da) final.
Aderindo aos maus tempos d’agora,
todo o santo dia aquele pagode de pano encardido e desbotado ladra stum-stuns de bárbara cacofonia de
discoteca equivalentes a descomunais arritmias cardíacas que sobressaltam a
passarada num raio de dez milhas terrestres e me inviabilizam, pelo menos até 6
de Janeiro próximo, o passeio beira-fluvial do dia (que para mim é às seis da
manhã, Inverno ou Verão, que começa).
Não se trata, todo este ror de
repugnâncias minhas, de ter alguma coisa contra a esfarrapada nação circense.
Trata-se tão-só de nada ter a favor dela, por mais que tente. Poucas coisas
nesta vida me são tão instantaneamente deprimentes quão os circos. De menino
que assaz me fazem mal à pituitária lírica. Na cidade marítima onde
veraneávamos (sim, tempos houve já em que as famílias operárias também
veraneavam – e nem era muito longe dos ricos frequentadores do casino, do
ténis-clube, do hipódromo de contraplacado, do chá-dançante e das casadas com
os oficiais da capitania), dizia-Vos eu então que, na cidade marítima onde
veraneávamos, o circo era fatal como a morte da avó (ou da bezerra, no caso dá
o mesmo).
Reparai: tenho cinco anos e recordo,
como se agora fosse, as jaulas inçadas de ímpias moscas atormentando os leões
mais magros, mais famélicos e mais tristes do mundo; o patriarcal elefante
padecendo a insuportável humilhação do exílio e com ar de quem sonha ainda poder
um dia deixar correr, ou morrer, o marfim ao mesmo campo-santo de seus livres antepassados
indiano-africanos; o ar de barbeiro pelado dos chimpanzés, tão parecidos sempre
com os nossos primos da Beira Alta; a lustral gordura alvinitente da gentil
senhorita assistente do atirador de facas; o palhaço sem pingo de graça mas
muita pinga de bagaço e de cachaça; a mulher-às-vezes-aranha-às-vezes-das-barbas
lavando e pondo a estiolar ao vento marinho suas ceroulas museológicas e suas cartas
de um amor antigo que se recusa a secar; o fadista internacional que nunca
passou nem a norte da Mealhada, nem a sul de Portel, nem a disco gravado, a
Oeste como a Leste; a arrogância toleirona do Director de Arena, esse patusco
dos bigodes retorcidos em parêntesis para sussurro da frase em linha dos lábios
e sempre com aquela casaca de granadeiro napoleónico que não tirava nem para
tomar o banho que nunca tomou; e o lixo que cada fim de época balnear aquela
malta abandonava ao dissabor eólico da praia cercana.
Por não ter eu salvaguardado ainda,
ou já, o dinheiro q.b. para ir habitar o deserto, levo com o circo à porta.
Isso me fez, antes de enviá-la em definitivo ao jornal, telefonar esta crónica
a um Amigo a quem também os circos deprimem sem remédio. Ele fez muito que sim
logo às primeiras instâncias respiratórias do primeiro parágrafo. Também ele
redesceu logo a menino, logo de novo assistindo, como se agora fosse, àquilo a
que pelas aldeias chamavam “comédias”:
famílias andrajosas que, queimadas do frio e do mau hábito da fome, pandeiretavam
e símio-realejavam por as eiras e os fontanários das paróquias as últimas
maravilhas de uma ilusão que há muito deixara, já então, de ser a primeira.
E agora isto: acontecer-me que a
escrita desta crónica acabasse por me cabisbaixar o brio – como se tivesse ido
ao circo. Ou como se, havendo finalmente logrado adormecer, adormecido sonhasse
com o leão liberto, liberto de homens e de moscas e de verões não africanos que
nunca voltam a ser o de 1969, esse outra vez livre e forte rei fazendo rugir a
altífona goela à aparição da gentil senhorita, também ela farta, e liberta
finalmente ela também, do sacanita que lhe atirava facas.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», de 19 de Dezembro de 2013
Ilustrações: Arte Postal / desenhos de Pedro Frazão, 1962
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