Em todas as artes, como em todas as coisas, há instantes ou referências que, para sempre, permanecem indeléveis - como fenómenos únicos, fascinantes e irrepetíveis. Pessoalmente, destacaria as circunstâncias excepcionais que, nos recentes Anos ’70 do Século XX, me revelaram Wanya - Escala em Orongo de Augusto Mota (texto) e Nelson Dias (desenhos) - uma aventura visionária e metafórica, testemunho a preto-e-branco, tratando em pontilíneo as ideias e os ideais relativos ao desígnio humano.
Conhecia Augusto Mota de muito antes da Wanya - particularmente, várias ilustrações suas vieram publicadas em suplementos juvenis que eu coordenava no Diário de Coimbra e no Mar Alto (Figueira da Foz). Aí também divulgava as histórias em quadradinhos, quando recebi em Coimbra a visita de Augusto - nascido em Leiria (1936), onde vivia, tal como Nelson (1940-93) - trazendo uma surpresa deslumbrante: os primeiros originais de Wanya, para uma vista de olhos e uma troca de impressões.
Fiquei espantado pelas virtualidades, nunca poderia imaginar uma tal obra-prima e por autores portugueses! Logo, propus dar início a uma campanha de difusão - tanto quanto possível vasta e, mesmo, além fronteiras. Em Dezembro de 1973, Wanya - Escala em Orongo consumou-se em álbum e, a partir de então, teve uma notável carreira pública. Mas os autores não esqueceram aqueles trâmites e, em especial, o envolvimento que o fanzine Copra havia estimulado, com um destacável de Boomovimento.
Assim, quando Copra desafiou os artistas de banda desenhada a conceberem, num máximo de seis pranchas (mais capa), uma heroína com o nome do seu título («em qualquer figura, profissão ou dimensão, temporal e espacial») - dando, afinal, corpo a um projecto que, desde o início, tivera em mente e me animara - Augusto Mota e Nelson Dias foram os primeiros a apresentar a sua versão... Esse magnífico trabalho, A Flor da Memória, foi publicado no número 3 de Copra, pela Primavera de 1974.
Um estilo coerente, evolutivo, sintetizava a narrativa épica e poética de Augusto Mota, orlando o grafismo minucioso e preciosista de Nelson Dias. Tanto em Wanya como em Copra, os autores optaram por uma linguagem inusitada, de modo a propor uma leitura/fruição dinâmica, por páginas a par, duas a duas, e não isoladamente. Quanto aos exemplos comuns da época, depreciavam uma conotação erótica que sagrara Barbarella, valorizando embora a pendência feminista de uma Saga de Xam...
Segundo Augusto Mota, «Wanya é o símbolo de um anseio… O facto de ser mulher, acentua o significado de uma ambiência mais criadora, fecunda mesmo, na medida em que gera vida com seu corpo e suas acções. Ela é um mensageiro de amor e paz, empenhado na construção do Futuro. Pelo epílogo, depois da destruição nuclear que aniquilou a superfície do planeta Orongo, há uma exortação de fé na autogestão do povo de Citania, séculos abrigado sob as cordilheiras de Lerga».
Para Nelson Dias, tratar-se «de uma mulher releva, ainda, uma evidente preocupação de não-agressividade, pois Wanya não recorre a armas nem faz uso da força - a não ser, uma vez em que está em causa a sua dignidade. Mesmo então, reage numa luta corpo a corpo - em defesa natural, quase instintiva. A violência que perpassa é sempre contada em flashback, como recordação - tanto do que vitimou Orongo, como do que ocorreu na Terra, antes de ter superado uma atávica inclinação guerreira». José de Mattos-Cruz, in www.truca.pt
AS MIL ARTES DE AUGUSTO MOTA QUE CRIA PARA O PÚBLICO, NÃO PARA EXPOSIÇÕES
Há mais de 30 anos, Augusto Mota dizia assim numa entrevista dada ao “Jornal de Notícias”: “Cada artista devia – utopicamente devia – ensinar tudo e a toda a gente. As escolas, as fábricas, as oficinas, deviam ser orientadas por um gosto novo e consciente. Tudo como está me parece desencontrado.”E, muitas linhas abaixo, respondia que “o mural é a forma mais útil de participação na comunidade, a mais responsável. (…). Será, sobretudo, a forma menos egoísta de realização artística, se não se trair a sua função popular e o deixarmos estar no jardim, na escola, na gare, na praia, na fábrica, no café, no cinema, na igreja, em todos os sítios onde a vista não tenha reservado o direito de admissão.”Se bem o disse, melhor o fez. Na Escola Domingos Sequeira, onde foi professor de inglês, o artista plástico Augusto Mota deixou um grande trabalho seu em espaço público, colocado bastante tempo antes de se aposentar.Para uma das paredes do desaparecido Café Colipo, pintou uma gigante “Lenda do Lis e Lena” que está hoje armazenada algures, com mazelas difíceis de recuperar.Para as instalações da antiga “Carvalho & Catarro”, concebeu “As conquistas da Ciência”, um painel de quatro metros cujo paradeiro desconhece.Quase do mesmo tamanho, eram dois trabalhos que decoravam as paredes dos Supermercados Ulmar. “Foram assassinados”, lamenta hoje Augusto Mota. Uma parte da sua superfície está escondida por prateleiras; e o resto foi coberto por tinta plástica. Serão recuperáveis? “Talvez…” – diz Augusto Mota com grandes reticências. “É mais importante a intervenção artística nos espaços públicos do que nas galerias”, teima Mota em repetir, não obstante os desaires relatados. E foi com essa preocupação social que, quando jovem, se juntou a Miguel Franco, Guilherme Valente e Rui Branco, com Álvaro Morna a fazer uma perninha, para publicarem regularmente o “Pinhal Novo”, suplemento cultural do REGIÃO DE LEIRIA. E – parece mentira! – pagavam, dos seus próprios bolsos, 500 escudos para a inserção de cada edição neste semanário.Cultor de solidariedades, Augusto Mota participou, nos idos de 60, noutra experiência de grupo: uma mostra colectiva de poesia ilustrada através da qual um grupo de jovens intelectuais leirienses levou as suas preocupações sociais a expôr em Leiria, Marinha Grande e Monte Real. A única frase que recorda, das que ficaram registadas no livro de honra, dizia assim: “Mereciam ir todos presos”.Outro sinal da repressão sufocante que foi contemporânea da juventude de Augusto Mota, foi a apreensão dos exemplares da revista “Gafanhoto”, um periódico de banda desenhada que custava cinco tostões na Papelaria Vital, no edifício do Mercado de Santana, no sítio onde ainda há poucos anos existia um talho. O miúdo Augusto, que assistiu à cena de olhos arregalados, teve dificuldade em perceber porque é que aquele senhor, afinal um polícia à paisana, não deixava que uma tão inofensiva revista se vendesse. E a surpresa da criança não ficou mais pequena, quando lhe explicaram que… a culpa era do Cuto, um garoto traquinas cujo desenhador, Jesus Blasco, fazia viver aventuras demasiado rebeldes para uma época em que todas as actividades e leituras dos adolescentes não podiam desviar-se dos domesticantes parâmetros da Mocidade Portuguesa.Talvez tenham sido estas proibições aquilo que desencadeou em Augusto Mota um fascínio muito especial pela banda desenhada, que culminaria com a sua participação, como argumentista, na elaboração de “Wanya – Escala em Orongo”. Editado em 1973, foi um álbum de sucesso, que chegou a ser traduzido para a Alemanha.Porém, já dez anos antes Augusto Mota se aventurara noutro empreendimento: o do desenho animado. “Variações sobre o mesmo Traço” foi uma experiência concebida mediante técnicas muito pessoais, que lhe granjeariam uma meia dúzia de prémios, incluindo dois primeiros: num concurso de cinema de amadores da Figueira da Foz e no Primeiro Festival Nacional de Cinema de Amadores de Guimarães.Para realização pessoal, criou outros filmes que guarda para si. Alguns foram realizados de parceria com o conhecido poeta Alberto Pimenta, seu colega de curso em Coimbra. Aliás, os primeiros quatro livros de Alberto Pimenta possuem assinatura de Augusto Mota. Como tantos outros, dos mais diversos autores. E como os livros de todos os autores, que o leitor porventura adquira na Livraria Martins. Quer dizer: são de sua autoria, os desenhos das sobre-capas que a livraria oferece. …E encerramos com a frustração de ter deixado muito por dizer. Das incursões de Augusto Mota pela escrita, da sua intensa actividade como gravador de linólio, madeira, serigrafia, da sua componente humanística colocada ao serviço da população da sua Ortigosa, do seu culto pelas plantas, bem evidenciado no seu desafogado jardim, onde todas as espécies estão identificadas…Vejam lá, que até o nosso propósito inicial ficou no tinteiro! Que era destacar o pioneirismo de Augusto Mota nas artes gráficas leirienses. Os seus cartazes, que muita gente tem visto e pouca tem identificado o autor… Os seus logotipos criados para as mais diversas empresas ou instituições… Os seus estudos para caixas de tomates, tampos de sanita, copos, óculos, camisas, pão de ló…
*Este texto foi publicado no Região de Leiria em 2 de Setembro de 2000, assinados por "José Freire de Oliveira". A utilização do nome completo do autor (e coordenador do Buraco da Fechadura) era uma exigência da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, com a alegação de que já existia uma carteira emitida com esse nome, para um fotógrafo que assinava profissionalmente "José Oliveira". A situação foi ultrapassada na revalidação seguinte da carteira, mercê da declaração do fotógrafo homónimo que amavelmente declarou que não publica textos, ao mesmo tempo que o coordenador do 'Buraco' declarava que não assina fotos.
posted by Zé Oliveira
Referências, à 2ª edição de WANYA, na Blogosfera:
http://wanya-escalaemorongo.blogspot.com/
http://kuentro.weblog.com.pt/arquivo/257325.html
http://janelaurbana.clix.pt/ler-1001-categoria-7.html
http://www.truca.pt/imaginario.html
http://va.vidasalternativas.eu/?p=623
http://casamarela5b.blogspot.com/2007/09/brevemente-reedio-de-wnya-escala-em.html
http://casamarela5b.blogspot.com/2008_01_01_archive.html
http://tebeosfera.com/Obra/Tebeo/BuruLan/ElGlobo/Indice.htm
http://matebarco.multiply.com/reviews
http://clix.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/221114
http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php?article=321017&visual=26&tema=5
http://sara-franco.blogspot.com/2008/01/entrevista-para-o-programa-de-rdio.html
http://becodasimagens.blogspot.com/
http://chavedoburaco.blogspot.com/
http://palaciodasvarandas.blogspot.com/
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Nota de Rodapé
Caros amigos,
Rui Zink, Geraldes Lino e José de Matos-Cruz irão apresentar o livro que revolucionou a banda desenhada portuguesa. O Palácio das Varandas, através do seu Almirante, Augusto Mota, autor do texto, far.se.á representar às mais altas esferas!!!!!
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